10.7.24

Armadilhas sistemáticas que passam mesmo debaixo do nariz

Thievery Corporation, “Lebanese Blonde” (live at El Ganzo Session), in https://www.youtube.com/watch?v=sA4_97zXBYk  

Irritam, as pessoas que leem doze horas no relógio e traduzem num displicente “meio-dia”. Se o dia nascera com a luz inaugural que ainda é infante às seis horas, das seis às doze perfaz apenas seis horas. Ora, o dia não é feito de doze horas para se considerar que passadas seis horas desde a sua nascença já estivesse ancorado à sua primeira metade. Não admira tanto insucesso escolar na matemática. 

Não sei como procedem os arquitetos quando alguém lhes diz: “passa-me a faca da cozinha que está na primeira gaveta”. De acordo com as convenções em curso, a primeira gaveta é a primeira quando se contam as gavetas de cima para baixo. Se a fileira de gavetas correspondesse à lógica do edificado para propriedade horizontal, e se ela fosse composta por cinco gavetas, aquela que foi tida como a primeira devia ser a quinta gaveta. E o arquiteto, abria a primeira gaveta a contar de baixo?

Os incidentes também acontecem com as palavras, que a semântica não fica à margem de contratempos. Um parque de estacionamento de embarcações de recreio dá pelo nome de “marina”. A etimologia da palavra remete para o mar: uma marina é uma estrutura de parqueamento de embarcações de recreio situada no mar. Fixada a nomenclatura, depressa se avivou a adulteração do significado do termo. Também há rios que acolhem estas infraestruturas que, apesar de assentarem em águas fluviais, continuam a dar pelo nome de “marina”. E tu, já foste ao dicionário ver se existe a palavra “fluvina”?

As expressões idiomáticas são um chão fértil para equívocos semânticos. Diz-se, por exemplo, que alguém está “a correr atrás do prejuízo”. O sentido que dá sentido à expressão é de alguém que se esforça para compensar, ou até superar, um contratempo. Como quem diz: é isto que tenho de fazer para ultrapassar a contrariedade. Entendida no sentido literal, a expressão “correr atrás do prejuízo” ilustra o contrário do seu entendimento enquanto expressão idiomática: se vou atrás do prejuízo, quando o agarrar, a posição em que fico não será mais favorável do que a que me encontrava antes de o ter agarrado. 

Num cosmos tão dado à materialidade, ninguém quer ficar com o prejuízo. Porque corre atrás dele é um enigma (ou apenas um incidente que desonra o idioma).

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