4.7.24

O pesadelo perfeito (e se a França fosse aqui?)

The Cure, “Other Voices”, in https://www.youtube.com/watch?v=iu5kL4gX358

Apetece imaginar o que teríamos entre mãos caso houvesse uma segunda volta das eleições legislativas e só pudéssemos escolher entre duas coligações de radicais. Esta hipótese até pode não motivar a perplexidade de muitos leitore(a)s, aquele(a)s que não têm problema em escolher o mal menor entre duas coligações de partidos extremistas. Para ele(a)s, não se colocam dúvidas entre escolher protofascistas e uma miscelânea de esquerdas radicais e, algumas delas, com duvidosa linhagem democrática. No meu caso, que me encontro nos “degenerados” que alinham pela teoria da equivalência entre a extrema-direita e a extrema-esquerda, a hipótese leva-me a um pesadelo dantesco.

Se esse pesadelo se materializasse, seríamos obrigados a escolher entre uma coligação liderada por Rita Matias e outra liderada por Mariana Mortágua. A coligação à direita reunindo partidos que foram fazendo concessões ao Chega e personagens que se radicalizaram com a radicalização em curso. Personagens que se aproximaram da extrema-direita, reagindo ao extremar das hostes contrárias – à semelhança de um argumentário que fundeou legitimidade na geringonça para defender que os partidos do centro-direita não deviam estabelecer linhas vermelhas em relação ao partido de Rita Matias. Reduzindo o PSD e a IL a mínimos impensáveis, deixando nas mãos da coligação liderada pelo Chega a alternativa à coligação das várias esquerdas.

Às esquerdas, um processo idêntico, inspirado na geringonça. Sob pretexto da engorda da extrema-direita e das demais direitas cerrarem fileiras à volta de Matias, para até a esquerda moderada (o PS de Alexandra Leitão) se situar numa latitude nunca dantes vista. Toda uma retórica e um programa de governo ditados pelos radicais à esquerda, aos quais os mais radicais dentro de PS (tendo tomado conta do partido) fizeram concessões. Com o silêncio taticamente comprometido do PCP de Alma Rivera e o frenesim moralista e folclórico do BE e do Livre, mais a boleia que o PAN teve de apanhar. 

Este seria o cenário mais ou menos decalcado do cenário com que os eleitores franceses se confrontam na segunda volta das eleições legislativas, a 6 de julho. Se este cenário se reproduzisse em Portugal, qual seria o lugar para os eleitores moderados, situados num amplo espectro entre as duas coligações extremistas a concurso? Do que vou lendo nos jornais franceses, os políticos do centro, personificados na derrotada coligação ligada a Macron, não parecem hesitantes: seu será o voto na Frente Popular. Como se estivessem ameaçados por um espada que os encostou à parede, desafiados a tomar uma decisão que os leve a escolher uma das coligações radicalizadas, os políticos do centro sinalizam aos seus eleitores uma escolha: o seu voto deve impedir os protofascistas de tomarem conta do governo.

É um voto pela negativa. Não é a escolha da Frente Popular, é entregar o voto a esta coligação para impedir que os protofascistas sob tutela de Marine Le Pen tomem o poder com o beneplácito da democracia. Votar para impedir alguém de chegar, ou de continuar, no poder faz parte da História e da ontologia da democracia. Quem não se lembra do famoso sapo que Cunhal engoliu (e mandou engolir aos fieis militantes do partido) quando Freitas do Amaral e Mário Soares disputaram a segunda volta das eleições presidenciais de 1986? 

Voltando ao exercício especulativo à escala nacional (ou seja, ao meu  pesadelo): o(a) leitor(a) moderado(a), que não teria votado na coligação de direitas liderada pela radical Matias nem na coligação das esquerdas que deslocou o compasso muito para a esquerda, como votaria na segunda volta se o sistema eleitoral fosse igual ao francês? Apenas posso responder por mim. E regresso ao cenário do pior dos pesadelos: primeiro, não tenho por hábito ausentar-me das eleições; segundo, nunca dei para o peditório do voto útil; terceiro – e para ampliar a dramatização do exercício especulativo, somando os dois primeiros aspetos – o(a) leitor(a) seria levado(a) à conclusão que eu teria de escolher entre uma das opções a concurso. Dito de uma forma que me agride as meninges: era votar na coligação Matias ou na coligação Mortágua.

Para o(a) leitor(a) entender este dilema que daria palco a um pesadelo colossal, não se esqueça que parto de um pressuposto que nem todos aceitam: um pesadelo dentro de um pesadelo é imaginar que o governo aterrou no colo da extrema-direita ou da extrema-esquerda. É a teoria da equivalência dos males que faz parte dos meus pressupostos políticos. Resgato um episódio ocorrido nas ruas de muitas cidades francesas na própria noite das eleições, após a divulgação dos resultados: muitos extremistas e, imagino, assim não tão extremistas vieram para a rua protestar contra a vitória da extrema-direita. Causa-me tanto medo a hipótese de a extrema-direita governar como a extrema-esquerda ostentar os seus pergaminhos antidemocráticos quando sai à rua para protestar contra uma vitória eleitoral selada pela maioria dos votos dos eleitores. 

É perante este quadro que reproduzo o cenário para Portugal e sou assaltado por um pesadelo aterrador. Não querendo prescindir do voto, e supondo que o voto em branco não seria alternativa viável, era como se dois punhais adejassem sobre as carótidas opostas. Cada um deles prestes a ferrar fundo numa das carótidas assim que a minha opção recaísse no outro concorrente às eleições. Porque, ao contrário de alguns bem-pensantes, a extrema-direita mete-me tanto medo como a extrema-esquerda. Sei que nem votaria na extrema-direita para impedir a chegada ao poder da coligação das esquerdas, nem votaria nesta coligação com medo da ascensão ao poder dos protofascistas e seus aliados. Para não ser cúmplice de dois cenários aterradores.

Se o(a) leitor(a) for moderado e perfilhar esta angústia onírica, então inclua nas suas orações (caso não seja ateu/ateia) o desejo de não irmos a caminho de tanta polarização como em França. Porque os radicalismos radicam na polarização e alimentam ainda mais radicalismo e polarização. Talvez um regresso às lições da História – e da História recente – seja mais do que apenas pedagógica. De outro modo, o(a) leitor(a) já pensou que sapo ia engolir se estivesse assoberbado pelo mesmo pesadelo?

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