Anda no ar uma acérrima polémica sobre o filme realizado por Mel Gibson, “A paixão de Cristo”, que só hoje estreia. O filme retrata as horas finais da vida de Jesus Cristo. Ao que consta – pelos relatos baseados em informações difundidas por um grupo restrito de pessoas que já visionou o filme – é uma descrição carregada de violência. De acordo com certas críticas que tenho lido, vindas quer de quadrantes afectos ao judaísmo quer de sectores do conservadorismo católico, o filme é brutal. Exagera na representação dos factos que, alegadamente, estão vertidos nos textos bíblicos com veracidade histórica.
A troca de argumentos tem servido para inflamar os que, por tudo e por nada, acusam o mundo de ser anti-semita. Não consigo perceber onde querem chegar estas almas atormentadas, que até da sua própria sombra devem desconfiar (também ela deve ser anti-semita…). Ainda merece saliência a não surpreendente coligação entre judeus militantes e conservadores católicos. É uma coligação que faz sentido. Porque antes de verem os seus destinos separados, judeus e cristãos tiveram um passado em comum, um passado no qual JC foi o referencial que os irmanou. Qualquer atentado à história estabelecida logo serve de pretexto para clamarem contra a heresia que ofende os seus interesses.
É perturbador constatar como estes quadrantes têm o condão de mobilizar energias contra as suas próprias causas, de tanto barulho fazerem quando algo ruma no sentido contrário às águas que eles conduzem ordenadamente. Mobilizando esforços tão audíveis, estes sectores dão um tiro no próprio pé. Claro que esta é apenas uma observação pessoal. Esta é a minha reacção quando deparo com apaixonadas reacções contra qualquer manifestação que ouse beliscar a consistência dos dogmas que se alicerçam em verdades históricas que, parece, são irrefutáveis.
Mas compreendo que estes sectores tenham que reagir desabridamente. De outro modo, não conseguem mobilizar os milhões de crentes que ordeiramente seguem os dogmas. Sem o carpido tecido pela oposição dos sectores religiosos mais conservadores, as “obras hereges” passam incólumes, sem manifestações de desagrado. O mundo poderá então concluir que a mensagem vertida por essas provocações corresponde à verdade. Uma nova verdade que suplanta a verdade estabelecida, escrita nos textos sagrados, impassível de refutação. No silêncio pode vingar uma reinterpretação da história onde se filiam os dogmas religiosos. Um revisionismo fatal para a dogmática que alimenta os credos contemporâneos.
Apesar de compreender a forma acicatada como a coligação judaico-cristã está a reagir, a estrepitosa reacção de desaprovação pode espicaçar muita gente a dar uma espreitadela no filme. Se a intenção dos guardiães da dogmática religiosa é a de chamar a atenção que o filme não merece ser visto, esta é a pior forma de alcançarem o seu objectivo. Os responsáveis pela promoção comercial do filme encontraram nestes obscuros conservadores judaicos e católicos os melhores publicitários para o filme de Mel Gibson!
Uma observação final de estranheza para a dimensão polémica que envolve o filme. Há muita gente que anda a opinar baseando-se na opinião de outros. Este furor opinativo não deriva de uma observação directa do filme, mas sim numa observação indirecta, através dos olhos (e do cérebro) das pessoas que já tiveram acesso ao filme. Não creio que daqui surja luz para uma discussão imparcial e coerente. Porque, à partida, só devemos expressar a opinião sobre aspectos nos quais somos observadores directos.
27.2.04
26.2.04
Quando o crime não compensa
Oito da manhã, numa manhã fria e cinzenta. Entrei na sala onde iria dar um exame. Poucos alunos inscritos, ainda menos os presentes (apenas quatro). Ao meu lado sentou-se um aluno para trocar impressões sobre a sua tese de licenciatura. Não tinham passado nem cinco minutos e logo dei de caras com um dos alunos a tentar fazer batota. Sub-repticiamente, retirou uns papelinhos do bolso do casaco, tentando colocá-los debaixo da folha de rascunho. Adverti-o para deitar fora esses papéis.
Como estava bem disposto, e tudo se passou antes mesmo que ele tivesse começado a escrever na folha de teste, decidi dar-lhe uma segunda oportunidade. Fui magnânimo. Outros, mais rígidos, decerto teriam reprovado a fraude e, logo ali, teriam expulso a aluno. Também sei de outros, mais condescendentes, que tapariam os olhos e não se incomodariam por serem ludibriados pelo aluno. Não caí em nenhum dos extremos. Como disse atrás, optei por lhe dar uma nova oportunidade. Mais até por uma curiosidade que cresceu dentro de mim. Para ver até onde conseguiria ir sem os auxiliares de memória que lhe interceptei. Fiquei na expectativa, para saber quanto tempo demoraria o aluno a permanecer no exame.
Não demorei muito tempo para saciar a curiosidade. Dez minutos depois, esboçada meia dúzia de linhas para uma das perguntas, o aluno caiu em si. Não valia a pena insistir sem os preciosos papéis. Entregou o exame e declarou a desistência. A minha dúvida estava esclarecida. Os auxiliares da sua memória estavam tão bem organizados que, sem eles, o aluno era incapaz de responder a qualquer das questões do exame. (Ou teria ficado perturbado com o meu zelo, de tal forma que as ideias ficaram bloqueadas?)
Quando alguém se comporta com tanta leviandade, o que dizer? Se não arriscasse, o resultado final não seria diferente do que vai obter. No fundo, à maioria dos alunos apenas interessa um de dois resultados: aprovar ou não. A reprovação tem as mesmas consequências, quer ela se traduza em dois valores, em cinco valores, na desistência, ou na anulação do teste. O efeito útil é o mesmo. Sobretudo porque, no caso de anulações devidas a fraudes como esta, a universidade não prevê processos disciplinares.
Não sei até que ponto isto não funciona como um incentivo à arte do “copianço”, já que os alunos têm a percepção de que compensa arriscar. O máximo que lhes pode acontecer é a anulação do teste (com a consequente reprovação) e uma breve humilhação perante os seus colegas. Que até se pode transformar em acto de heroísmo pelos seus pares. Eles olharão para o malvado professor como o estorvo ao sucesso escolar, ainda que conseguido com técnicas fraudulentas. Com a propensão para tecer loas aos “coitadinhos” que abunda na sociedade contemporânea, não custa a imaginar que o infeliz expulso do exame fosse erguido em ombros pela solidariedade compungida dos seus colegas. E que o professor fosse acusado de excessiva rigidez e, por isso, apoucado.
Surpresa? De todo. Não vivemos num país onde a mediocridade progride, volumosa, invadindo o terreno do mérito? Não vinga a ideia de que tudo se consegue, mais tarde ou mais cedo? E que se puder ser alcançado com o menor esforço possível, tanto melhor? É uma doença atroz, que mina o valor da sociedade. Uma doença que se incrusta nas gerações mais novas, habituadas a assistir aos tristes espectáculos de mediania das gerações mais velhas. Acomodam-se, em vez de remarem noutro sentido. Assim domina o vírus da mediocridade, do “mínimo denominador comum”, da letargia, esse vírus que corrompe por dentro e atira o país para um doce abismo.
Como estava bem disposto, e tudo se passou antes mesmo que ele tivesse começado a escrever na folha de teste, decidi dar-lhe uma segunda oportunidade. Fui magnânimo. Outros, mais rígidos, decerto teriam reprovado a fraude e, logo ali, teriam expulso a aluno. Também sei de outros, mais condescendentes, que tapariam os olhos e não se incomodariam por serem ludibriados pelo aluno. Não caí em nenhum dos extremos. Como disse atrás, optei por lhe dar uma nova oportunidade. Mais até por uma curiosidade que cresceu dentro de mim. Para ver até onde conseguiria ir sem os auxiliares de memória que lhe interceptei. Fiquei na expectativa, para saber quanto tempo demoraria o aluno a permanecer no exame.
Não demorei muito tempo para saciar a curiosidade. Dez minutos depois, esboçada meia dúzia de linhas para uma das perguntas, o aluno caiu em si. Não valia a pena insistir sem os preciosos papéis. Entregou o exame e declarou a desistência. A minha dúvida estava esclarecida. Os auxiliares da sua memória estavam tão bem organizados que, sem eles, o aluno era incapaz de responder a qualquer das questões do exame. (Ou teria ficado perturbado com o meu zelo, de tal forma que as ideias ficaram bloqueadas?)
Quando alguém se comporta com tanta leviandade, o que dizer? Se não arriscasse, o resultado final não seria diferente do que vai obter. No fundo, à maioria dos alunos apenas interessa um de dois resultados: aprovar ou não. A reprovação tem as mesmas consequências, quer ela se traduza em dois valores, em cinco valores, na desistência, ou na anulação do teste. O efeito útil é o mesmo. Sobretudo porque, no caso de anulações devidas a fraudes como esta, a universidade não prevê processos disciplinares.
Não sei até que ponto isto não funciona como um incentivo à arte do “copianço”, já que os alunos têm a percepção de que compensa arriscar. O máximo que lhes pode acontecer é a anulação do teste (com a consequente reprovação) e uma breve humilhação perante os seus colegas. Que até se pode transformar em acto de heroísmo pelos seus pares. Eles olharão para o malvado professor como o estorvo ao sucesso escolar, ainda que conseguido com técnicas fraudulentas. Com a propensão para tecer loas aos “coitadinhos” que abunda na sociedade contemporânea, não custa a imaginar que o infeliz expulso do exame fosse erguido em ombros pela solidariedade compungida dos seus colegas. E que o professor fosse acusado de excessiva rigidez e, por isso, apoucado.
Surpresa? De todo. Não vivemos num país onde a mediocridade progride, volumosa, invadindo o terreno do mérito? Não vinga a ideia de que tudo se consegue, mais tarde ou mais cedo? E que se puder ser alcançado com o menor esforço possível, tanto melhor? É uma doença atroz, que mina o valor da sociedade. Uma doença que se incrusta nas gerações mais novas, habituadas a assistir aos tristes espectáculos de mediania das gerações mais velhas. Acomodam-se, em vez de remarem noutro sentido. Assim domina o vírus da mediocridade, do “mínimo denominador comum”, da letargia, esse vírus que corrompe por dentro e atira o país para um doce abismo.
25.2.04
Um Carnaval lusitano
Que estranho país. Um país que é, em si mesmo, um paradoxo. Quando anda meio mundo a avisar a concordância da outra metade para um estado depressivo sem precedentes, eis que chega o Carnaval e desata toda a gente a festejar. Bem vistas as coisas, faz todo o sentido que a população se anestesie em festejos colectivos. De outro modo, como suportar os restantes 362 dias de modorra? Se não se aproveita o Carnaval, quando “ninguém leva a mal”, para zurzir no que está mal, para apedrejar com folia os actores que são incapazes de nos colocar nos trilhos da prosperidade, quando fazê-lo?
Por aqui o Carnaval veio em antecipação. Com a fanfarra das presidenciais extemporâneas, a peixeirada veio para a praça pública. Com toques de requinte, pois os actores são pessoas de pergaminhos, figuras eméritas do pretenso jet set nacional e do meio académico, fazedores de opinião com méritos incontestados. Temos as habituais diatribes de um narcísico Santana Lopes. Adicionamos mais um tabu de Cavaco Silva (que parece alimentar o imaginário nacional com uma versão revista e requentada de um sebastianismo militante de que a nação sempre gostou de nutrir). Observamos um Marcelo Rebello de Sousa que dispara farpas venenosas na sua homilia dominical na TVI, sem negar peremptoriamente que ainda anseia ser a figura de proa do PSD nas presidenciais. O resultado deste cocktail explosivo é um outro Carnaval feito de acusações trocadas, bem ao jeito das comadres que outrora se enchiam de salamaleques e agora estão de candeias às avessas.
O Carnaval não fica por aqui. Na semana passada o primeiro-ministro anunciou, triunfante, que em 2003 o défice orçamental foi de 2,8%. De seguida as esquerdas, numa coçadeira incomodativa, acusaram Durão Barroso de ser um mentiroso incorrigível, de enganar o país. Durão estará para as esquerdas nacionais como Liedson está para Mourinho – um enganador.
Ferro Rodrigues apontou o dedo às manobras de imaginação contabilística (para ele artificiais) que terão permitido colocar o défice abaixo dos 3%. Sem as receitas extraordinárias, o défice teria atingido 5%. Pena é que Ferro não refresque a memória reconhecendo que o aperto orçamental tem muito a ver com a factura a pagar pela irresponsável postura dos governos de que ele fez parte. Pena é que Ferro não avive a memória dos portugueses dizendo que o último governo do PS apresentou uma estimativa de 1,1% para o défice de 2001 e que, no encerramento das contas, o resultado quase quadruplicou essa previsão (4,1%).
Com estas manobras de baixa política, que enganam os cidadãos com pouca memória ou desconhecimento da matéria, quem é o enganador é o líder do PS. A decência obrigaria os socialistas a maior decoro nesta matéria. Na sua ausência, eles são os bobos da corte de um corso carnavalesco onde as desgraças nacionais são comicamente carpidas.
Abúlico é o adjectivo que melhor enquadra a cidadania que exercemos. Criticamos sem dó nem piedade, mas depois contribuímos com o nosso voto para a perpetuação dos males. Afinal somos partes intervenientes no Carnaval que o país vive 365 dias por ano. Quando julgamos que somos os encenadores da peça teatral dos corsos carnavalescos, que sem piedade batem na classe política, afinal somos agentes activos desse desfile. Com uma passividade acrítica, mantemos as elites que se eternizam. Só não sei se o fazemos conscientemente – para, depois, envergarmos a roupagem de encenadores que aproveitam o Carnaval para apontar o dedo inquisidor aos políticos que persistem na incompetência.
Por aqui o Carnaval veio em antecipação. Com a fanfarra das presidenciais extemporâneas, a peixeirada veio para a praça pública. Com toques de requinte, pois os actores são pessoas de pergaminhos, figuras eméritas do pretenso jet set nacional e do meio académico, fazedores de opinião com méritos incontestados. Temos as habituais diatribes de um narcísico Santana Lopes. Adicionamos mais um tabu de Cavaco Silva (que parece alimentar o imaginário nacional com uma versão revista e requentada de um sebastianismo militante de que a nação sempre gostou de nutrir). Observamos um Marcelo Rebello de Sousa que dispara farpas venenosas na sua homilia dominical na TVI, sem negar peremptoriamente que ainda anseia ser a figura de proa do PSD nas presidenciais. O resultado deste cocktail explosivo é um outro Carnaval feito de acusações trocadas, bem ao jeito das comadres que outrora se enchiam de salamaleques e agora estão de candeias às avessas.
O Carnaval não fica por aqui. Na semana passada o primeiro-ministro anunciou, triunfante, que em 2003 o défice orçamental foi de 2,8%. De seguida as esquerdas, numa coçadeira incomodativa, acusaram Durão Barroso de ser um mentiroso incorrigível, de enganar o país. Durão estará para as esquerdas nacionais como Liedson está para Mourinho – um enganador.
Ferro Rodrigues apontou o dedo às manobras de imaginação contabilística (para ele artificiais) que terão permitido colocar o défice abaixo dos 3%. Sem as receitas extraordinárias, o défice teria atingido 5%. Pena é que Ferro não refresque a memória reconhecendo que o aperto orçamental tem muito a ver com a factura a pagar pela irresponsável postura dos governos de que ele fez parte. Pena é que Ferro não avive a memória dos portugueses dizendo que o último governo do PS apresentou uma estimativa de 1,1% para o défice de 2001 e que, no encerramento das contas, o resultado quase quadruplicou essa previsão (4,1%).
Com estas manobras de baixa política, que enganam os cidadãos com pouca memória ou desconhecimento da matéria, quem é o enganador é o líder do PS. A decência obrigaria os socialistas a maior decoro nesta matéria. Na sua ausência, eles são os bobos da corte de um corso carnavalesco onde as desgraças nacionais são comicamente carpidas.
Abúlico é o adjectivo que melhor enquadra a cidadania que exercemos. Criticamos sem dó nem piedade, mas depois contribuímos com o nosso voto para a perpetuação dos males. Afinal somos partes intervenientes no Carnaval que o país vive 365 dias por ano. Quando julgamos que somos os encenadores da peça teatral dos corsos carnavalescos, que sem piedade batem na classe política, afinal somos agentes activos desse desfile. Com uma passividade acrítica, mantemos as elites que se eternizam. Só não sei se o fazemos conscientemente – para, depois, envergarmos a roupagem de encenadores que aproveitam o Carnaval para apontar o dedo inquisidor aos políticos que persistem na incompetência.
24.2.04
Código de conduta
Em dia de Carnaval planeei escrever sobre o Carnaval desbragado em que o país vive afundado. Fica para amanhã, pois a urgência de um estado de alma contraditório assim o exige. Dissertar sobre o estado carnavalesco do país supõe um exercício mais dado a uma descarga biliar, destilando o cepticismo que se ergue acima da linha do horizonte. Mas o estado de alma momentâneo está nos antípodas desse exercício de mordacidade.
Os olhos também despertam para o lado belo da vida, mesmo quando a desdita desfila mesmo à nossa frente numa passerelle incendiada . Há qualquer coisa de belo, inusitadamente harmónico, mesmo naqueles aspectos que nos levam a franzir o sobrolho de descontentamento. Ontem, por exemplo, quando deparava com as habituais máscaras de Carnaval que já circulavam pela rua. Nunca fui dado a tais entretenimentos. Considero o Carnaval um festejo inútil, porque os foliões procuram fazer de conta, pelo menos neste dia, que o mundo é diferente daquele em que vivem. É uma celebração efémera, um vácuo onde o ser humano atira para trás das costas as misérias vividas ao longo dos outros dias do ano. Só conta a folia. Refugiamo-nos nas máscaras que trajamos.
Ontem consegui esboçar um sorriso ao ver os disfarces que alguns transeuntes transportavam. Tentei, por uma vez, compreender porque está enraizado o costume das pessoas se esconderem por detrás de uma máscara. Tentei desmistificar interpretações que entram no terreno da sociologia. Procurei simplificar. Entender que o Carnaval é uma manifestação de singeleza para o comum dos mortais. É um escape para quem gosta de se divertir. Uma forma diferente de agendar a diversão, obrigando as pessoas a usar da imaginação para encontrar máscaras delirantes, que fujam do normal. E, afinal, faz algum mal entrar no mundo fantástico do faz-de-conta?
É nesta capacidade de encontrar significados diferentes que reside a abertura de espírito que nos coloca no limiar da auto-satisfação. É estimulante ter convicções próprias. Como é animador alicerçar ideias com base num raciocínio elaborado. Mas também é um exercício saudável tentar encontrar o lado oculto que nos desnuda uma concepção ignorada das coisas sobre as quais reflectimos. Até para medir as nossas teorias contra novas abordagens, que nos poderão levar ao abandono dessas teorias ou apenas a refiná-las. O que se convoca é a necessária tolerância, como peça imprescindível de quadros mentais flexíveis que recusam dogmas petrificados.
Exercitar o intelecto e massajar as ideias com as quais não simpatizamos – eis um exigente desafio que deve estar acima de todas as certezas, de todos os dogmas. Conviver na harmonia, discordar e explicar a dissidência, não existir a urgência de eliminar o terreno que nos separa do outro. Trocar ideias, estar aberto às opiniões de outrem, não entrar no debate para convencer nem com o receio de ser derrotado. A discussão pura, pelo prazer da argumentação, pelo delicioso exercício da acareação de ideias. Tolerar, para ser tolerado.
A essência de uma troca genuína, como terreno profícuo para a compreensão do outro e como veículo para o encontro com o eu. O caminho para o bem-estar individual, sem atritos nem convulsões.
Os olhos também despertam para o lado belo da vida, mesmo quando a desdita desfila mesmo à nossa frente numa passerelle incendiada . Há qualquer coisa de belo, inusitadamente harmónico, mesmo naqueles aspectos que nos levam a franzir o sobrolho de descontentamento. Ontem, por exemplo, quando deparava com as habituais máscaras de Carnaval que já circulavam pela rua. Nunca fui dado a tais entretenimentos. Considero o Carnaval um festejo inútil, porque os foliões procuram fazer de conta, pelo menos neste dia, que o mundo é diferente daquele em que vivem. É uma celebração efémera, um vácuo onde o ser humano atira para trás das costas as misérias vividas ao longo dos outros dias do ano. Só conta a folia. Refugiamo-nos nas máscaras que trajamos.
Ontem consegui esboçar um sorriso ao ver os disfarces que alguns transeuntes transportavam. Tentei, por uma vez, compreender porque está enraizado o costume das pessoas se esconderem por detrás de uma máscara. Tentei desmistificar interpretações que entram no terreno da sociologia. Procurei simplificar. Entender que o Carnaval é uma manifestação de singeleza para o comum dos mortais. É um escape para quem gosta de se divertir. Uma forma diferente de agendar a diversão, obrigando as pessoas a usar da imaginação para encontrar máscaras delirantes, que fujam do normal. E, afinal, faz algum mal entrar no mundo fantástico do faz-de-conta?
É nesta capacidade de encontrar significados diferentes que reside a abertura de espírito que nos coloca no limiar da auto-satisfação. É estimulante ter convicções próprias. Como é animador alicerçar ideias com base num raciocínio elaborado. Mas também é um exercício saudável tentar encontrar o lado oculto que nos desnuda uma concepção ignorada das coisas sobre as quais reflectimos. Até para medir as nossas teorias contra novas abordagens, que nos poderão levar ao abandono dessas teorias ou apenas a refiná-las. O que se convoca é a necessária tolerância, como peça imprescindível de quadros mentais flexíveis que recusam dogmas petrificados.
Exercitar o intelecto e massajar as ideias com as quais não simpatizamos – eis um exigente desafio que deve estar acima de todas as certezas, de todos os dogmas. Conviver na harmonia, discordar e explicar a dissidência, não existir a urgência de eliminar o terreno que nos separa do outro. Trocar ideias, estar aberto às opiniões de outrem, não entrar no debate para convencer nem com o receio de ser derrotado. A discussão pura, pelo prazer da argumentação, pelo delicioso exercício da acareação de ideias. Tolerar, para ser tolerado.
A essência de uma troca genuína, como terreno profícuo para a compreensão do outro e como veículo para o encontro com o eu. O caminho para o bem-estar individual, sem atritos nem convulsões.
23.2.04
Os dois maiores acontecimentos da história de Portugal
Na apresentação pública de uma obra de história de Portugal coordenada por José Hermano Saraiva, um jornalista perguntou ao ministro da cultura quais são os dois acontecimentos de maior relevância na história do país. A pergunta tem o seu quê de presente envenenado. Digo-o porque quando me relataram o episódio interiorizei o desafio como ele me tivesse sido dirigido. Confesso quem só ao fim de um par de minutos encontrei uma resposta.
Como responderia? Diria que os dois acontecimentos mais emblemáticos da história de Portugal foram a ascensão liberal do início do século XIX e a adesão às Comunidades Europeias em 1986. É fácil encontrar outros momentos que rivalizem com estes que escolhi: a fundação da nacionalidade, datas da epopeia dos descobrimentos, a restauração da independência, a implantação da república, ou a queda da ditadura em 1974.
Escolhi a revolução liberal pelo simbolismo transbordante. O país vivia então o dilema do absolutismo, numa tentativa de prolongar uma concepção de poder ultrapassada pelos acontecimentos e pela filosofia política dominante noutros países. Se Portugal se mantivesse arreigado ao absolutismo duas consequências negativas teriam deprimido ainda mais o país. Por um lado, um fosso civilizacional em relação ao resto da Europa. Lançando as sementes para colocar o país no limiar do terceiro-mundismo. Por outro lado, teria o condão de afundar a população portuguesa num clima de obscurantismo, negando as liberdades básicas que foram assim colocadas em cima da mesa pelos revoltosos liberais.
O segundo momento histórico foi a adesão às Comunidades Europeias. Sou sincero, o “amarrar” do destino do país à integração europeia foi o melhor legado que a actual geração de políticos pode dar. Não vou justificá-lo tanto numa óptica materialista, com os ganhos de bem-estar gerados pela afluência de fundos estruturais. Mais importante é a possibilidade dos erros governativos à escala nacional serem atenuados pelo facto de fazermos parte de um espaço mais abrangente.
Com a adesão do país às (então) Comunidades Europeias, um interessante paralelo se estabelece com os italianos. A principal motivação para aderirem às Comunidades Europeias consistia no reconhecimento de que é melhor ser governado a partir de Bruxelas (ou de qualquer outro local) do que a partir de Roma. Este princípio, com a necessária adaptação geográfica, decalca-se perfeitamente para a realidade portuguesa.
Hoje, ao darmos tanta importância ao que se passa na política doméstica, somos afunilados para um quadro mental erróneo. Acreditamos que as decisões vitais para o país passam pelo Terreiro do Paço. Mas a política doméstica encerra uma visão paroquial que só serve para alimentar o ego narcísico dos políticos nacionais, como esteio ao negócio estabelecido da comunicação social e para enganar o cidadão comum. Pensamos que o néon ilumina Lisboa, desconhecendo que os holofotes irradiam uma poderosa luz a partir de outros locais (Bruxelas, Berlim, Paris, Frankfurt, Londres, Nova Iorque – e todos, todos aqueles locais onde o mercado exibe o seu poder manietando a autonomia dos políticos).
Como responderia? Diria que os dois acontecimentos mais emblemáticos da história de Portugal foram a ascensão liberal do início do século XIX e a adesão às Comunidades Europeias em 1986. É fácil encontrar outros momentos que rivalizem com estes que escolhi: a fundação da nacionalidade, datas da epopeia dos descobrimentos, a restauração da independência, a implantação da república, ou a queda da ditadura em 1974.
Escolhi a revolução liberal pelo simbolismo transbordante. O país vivia então o dilema do absolutismo, numa tentativa de prolongar uma concepção de poder ultrapassada pelos acontecimentos e pela filosofia política dominante noutros países. Se Portugal se mantivesse arreigado ao absolutismo duas consequências negativas teriam deprimido ainda mais o país. Por um lado, um fosso civilizacional em relação ao resto da Europa. Lançando as sementes para colocar o país no limiar do terceiro-mundismo. Por outro lado, teria o condão de afundar a população portuguesa num clima de obscurantismo, negando as liberdades básicas que foram assim colocadas em cima da mesa pelos revoltosos liberais.
O segundo momento histórico foi a adesão às Comunidades Europeias. Sou sincero, o “amarrar” do destino do país à integração europeia foi o melhor legado que a actual geração de políticos pode dar. Não vou justificá-lo tanto numa óptica materialista, com os ganhos de bem-estar gerados pela afluência de fundos estruturais. Mais importante é a possibilidade dos erros governativos à escala nacional serem atenuados pelo facto de fazermos parte de um espaço mais abrangente.
Com a adesão do país às (então) Comunidades Europeias, um interessante paralelo se estabelece com os italianos. A principal motivação para aderirem às Comunidades Europeias consistia no reconhecimento de que é melhor ser governado a partir de Bruxelas (ou de qualquer outro local) do que a partir de Roma. Este princípio, com a necessária adaptação geográfica, decalca-se perfeitamente para a realidade portuguesa.
Hoje, ao darmos tanta importância ao que se passa na política doméstica, somos afunilados para um quadro mental erróneo. Acreditamos que as decisões vitais para o país passam pelo Terreiro do Paço. Mas a política doméstica encerra uma visão paroquial que só serve para alimentar o ego narcísico dos políticos nacionais, como esteio ao negócio estabelecido da comunicação social e para enganar o cidadão comum. Pensamos que o néon ilumina Lisboa, desconhecendo que os holofotes irradiam uma poderosa luz a partir de outros locais (Bruxelas, Berlim, Paris, Frankfurt, Londres, Nova Iorque – e todos, todos aqueles locais onde o mercado exibe o seu poder manietando a autonomia dos políticos).
20.2.04
Homofobia a destempo
Anteontem, o presidente da Comissão de Acompanhamento da Lei de Adopção, Luís Villas-Boas, teceu considerações deslocadas do tempo. Fê-lo a propósito da sentença de um tribunal espanhol, que autorizou a adopção de duas gémeas por um casal de lésbicas. Para Villas-Boas, a adopção de crianças no seio de casais homossexuais é contra-natura. Ela atenta contra a “sexualidade normal” das crianças e pode levar a uma personalidade distorcida.
Para quem defende as liberdades individuais, declarações deste calibre são ofensivas. Elas anunciam uma intolerância contra as pessoas que têm opções sexuais que se afastam da padronizada heterossexualidade. Como se não lhes assistisse o direito de enveredarem por esta opção homossexual. Ao rejeitar o dogma ultrapassado, inspirado no totalitarismo católico que imperou durante tanto tempo, de que a homossexualidade é um comportamento desviante, menos aceitável é a posição de Villas-Boas.
Ao deparar com estas declarações, uma onda de desconforto percorreu-me pelo interior. Pelo desrespeito que Villas-Boas manifestou para com uma opção sexual que é tão legítima como a sua. Mas também porque Villas-Boas arvorou-se em consciência protectora das crianças abandonadas. Quando escutei as inflamadas opiniões de Villas-Boas, perguntei-me que autoridade tem este senhor para se armar em paladino dos interesses das crianças abandonadas que não têm um lar para as receber. Será melhor continuarem abrigadas nas instituições vocacionadas para dar guarida a estas crianças?
Não vou aqui questionar a existência dessas instituições. Decerto têm um objectivo louvável, porque na sua ausência as crianças abandonadas seriam confrontadas com o abismo da sobrevivência. Onde não creio existirem dúvidas é no afecto que as crianças abandonadas recebem se continuarem por anos a fio nestes instituições, ou se lhes for dada a oportunidade de serem acolhidas por uma família adoptiva. É a diferença entre um tratamento relativamente impessoal, de um lado, e o amor e o carinho que o casal de pais adoptivos passa a dedicar à criança que acolhem no seu seio, no outro cenário.
Villas-Boas cai numa contradição. Prefere uma família sem rosto, incapaz de devotar a cada criança a mesma fracção de amor e carinho que um casal se predispõe a ofertar através do acto da adopção. Qual “engenheiro social”, lavra a sentença que condiciona o direito ao bem-estar das crianças abandonadas. Sem dar conta que está a atropelar o direito à personalidade de cada criança, que porventura prefere ser inserida num núcleo familiar do que permanecer na alegria sombria da instituição de acolhimento.
Esta é reacção sentida ao ouvir as palavras de Villas-Boas. Porém, por mais lamentáveis que me pareçam as suas ideias, tenho que reconhecer que esse é um direito que lhe assiste com a mesma legitimidade que os homossexuais têm o direito a expressar a sua opção de vida. Mesmo dizendo que me choca mais escutar opiniões como as de Villas-Boas do que assistir à adopção de uma criança por um casal de homossexuais.
Para quem defende as liberdades individuais, declarações deste calibre são ofensivas. Elas anunciam uma intolerância contra as pessoas que têm opções sexuais que se afastam da padronizada heterossexualidade. Como se não lhes assistisse o direito de enveredarem por esta opção homossexual. Ao rejeitar o dogma ultrapassado, inspirado no totalitarismo católico que imperou durante tanto tempo, de que a homossexualidade é um comportamento desviante, menos aceitável é a posição de Villas-Boas.
Ao deparar com estas declarações, uma onda de desconforto percorreu-me pelo interior. Pelo desrespeito que Villas-Boas manifestou para com uma opção sexual que é tão legítima como a sua. Mas também porque Villas-Boas arvorou-se em consciência protectora das crianças abandonadas. Quando escutei as inflamadas opiniões de Villas-Boas, perguntei-me que autoridade tem este senhor para se armar em paladino dos interesses das crianças abandonadas que não têm um lar para as receber. Será melhor continuarem abrigadas nas instituições vocacionadas para dar guarida a estas crianças?
Não vou aqui questionar a existência dessas instituições. Decerto têm um objectivo louvável, porque na sua ausência as crianças abandonadas seriam confrontadas com o abismo da sobrevivência. Onde não creio existirem dúvidas é no afecto que as crianças abandonadas recebem se continuarem por anos a fio nestes instituições, ou se lhes for dada a oportunidade de serem acolhidas por uma família adoptiva. É a diferença entre um tratamento relativamente impessoal, de um lado, e o amor e o carinho que o casal de pais adoptivos passa a dedicar à criança que acolhem no seu seio, no outro cenário.
Villas-Boas cai numa contradição. Prefere uma família sem rosto, incapaz de devotar a cada criança a mesma fracção de amor e carinho que um casal se predispõe a ofertar através do acto da adopção. Qual “engenheiro social”, lavra a sentença que condiciona o direito ao bem-estar das crianças abandonadas. Sem dar conta que está a atropelar o direito à personalidade de cada criança, que porventura prefere ser inserida num núcleo familiar do que permanecer na alegria sombria da instituição de acolhimento.
Esta é reacção sentida ao ouvir as palavras de Villas-Boas. Porém, por mais lamentáveis que me pareçam as suas ideias, tenho que reconhecer que esse é um direito que lhe assiste com a mesma legitimidade que os homossexuais têm o direito a expressar a sua opção de vida. Mesmo dizendo que me choca mais escutar opiniões como as de Villas-Boas do que assistir à adopção de uma criança por um casal de homossexuais.
19.2.04
Um novo triunvirato para a União Europeia?
Os líderes da Alemanha, França e Reino Unido estiveram ontem reunidos em Berlim. Em cima da mesa estiveram propostas para revigorar a União Europeia (UE). Depois da pequena crise que a UE atravessa devido aos resultados inconclusivos sobre a Constituição da União Europeia; e depois da crise de credibilidade motivada pelo não cumprimento das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento; compreende-se que três dos maiores países da União tenham sentido a necessidade de chamar a si a iniciativa. Para surgirem aos olhos da opinião pública como as novas locomotivas que querem imprimir o rumo e a velocidade da UE.
Alguns Estados membros não se coibiram de criticar em público a iniciativa, temendo que um novo directório esteja a tomar forma e venha a impor unilateralmente os seus interesses aos demais Estados membros. No entanto, esses temores não têm razão de ser.
Primeiro, as alterações de maior impacto carecem de unanimidade. Ora, estamos a falar da vontade de três Estados membros, à qual tem que se adicionar a concordância dos restantes doze. Se alguns Estados membros não aceitarem as alterações propostas pelo triunvirato, têm uma poderosa arma de arremesso para contrariar a sua aplicação – o poder do voto.
A ideia de um triunvirato dominante dilui-se no processo formal de voto e nas manobras informais que tentam cativar aliados. Através de ambos os mecanismos, a existência de um directório é materialmente impraticável. É impossível que três Estados membros imponham a sua vontade contra os restantes doze. Outra coisa, bem diferente, é a necessária captação de apoios para que as propostas do triunvirato tenham vencimento. Quanto mais Estados membros se vierem a colocar ao lado das propostas gizadas pelo triunvirato, menos o rótulo de directório faz sentido.
Segundo, não se pode ignorar o historial da integração europeia, essencialmente construído através de iniciativas de grupos restritos de Estados membros. Exibir repulsa pela iniciativa de Berlim é ignorar o passado da integração europeia, ou manifestar um serôdio oportunismo de criticar apenas por se ter sido colocado à margem das negociações.
Uma outra forma de erguer o dedo acusador à reunião de Berlim desvia-se para o subjectivismo. Podemos corporizar um sentimento de desconfiança devido às personalidades envolvidas na reunião. Todos são líderes nacionais sem carisma. Pior ainda, são líderes que não se distinguiram por uma visão consistente sobre o devir da União Europeia. São pessoas a quem não se conhece uma adesão franca e descomprometida ao ideal da integração europeia. Por mais do que uma vez, não hesitaram em colocar os interesses particulares dos respectivos países à frente do interesse comum – ainda que isso supusesse violar regras que obrigam todos os Estados membros. Ainda que, dessa forma, se furtem às suas especiais responsabilidades.
De forma alguma podemos comparar Schröder, Chirac e Blair com Köhl ou Mitterrand, sem os quais a União Económica e Monetária não teria nascido no tempo e da forma que nasceu. Pelo mau exemplo que os líderes britânico, alemão e francês representam para a UE, aí sim se filia a desconfiança em relação à reunião de Berlim. Porque se trata de personalidades erráticas, não podemos ter a certeza para onde eles querem conduzir a UE.
Alguns Estados membros não se coibiram de criticar em público a iniciativa, temendo que um novo directório esteja a tomar forma e venha a impor unilateralmente os seus interesses aos demais Estados membros. No entanto, esses temores não têm razão de ser.
Primeiro, as alterações de maior impacto carecem de unanimidade. Ora, estamos a falar da vontade de três Estados membros, à qual tem que se adicionar a concordância dos restantes doze. Se alguns Estados membros não aceitarem as alterações propostas pelo triunvirato, têm uma poderosa arma de arremesso para contrariar a sua aplicação – o poder do voto.
A ideia de um triunvirato dominante dilui-se no processo formal de voto e nas manobras informais que tentam cativar aliados. Através de ambos os mecanismos, a existência de um directório é materialmente impraticável. É impossível que três Estados membros imponham a sua vontade contra os restantes doze. Outra coisa, bem diferente, é a necessária captação de apoios para que as propostas do triunvirato tenham vencimento. Quanto mais Estados membros se vierem a colocar ao lado das propostas gizadas pelo triunvirato, menos o rótulo de directório faz sentido.
Segundo, não se pode ignorar o historial da integração europeia, essencialmente construído através de iniciativas de grupos restritos de Estados membros. Exibir repulsa pela iniciativa de Berlim é ignorar o passado da integração europeia, ou manifestar um serôdio oportunismo de criticar apenas por se ter sido colocado à margem das negociações.
Uma outra forma de erguer o dedo acusador à reunião de Berlim desvia-se para o subjectivismo. Podemos corporizar um sentimento de desconfiança devido às personalidades envolvidas na reunião. Todos são líderes nacionais sem carisma. Pior ainda, são líderes que não se distinguiram por uma visão consistente sobre o devir da União Europeia. São pessoas a quem não se conhece uma adesão franca e descomprometida ao ideal da integração europeia. Por mais do que uma vez, não hesitaram em colocar os interesses particulares dos respectivos países à frente do interesse comum – ainda que isso supusesse violar regras que obrigam todos os Estados membros. Ainda que, dessa forma, se furtem às suas especiais responsabilidades.
De forma alguma podemos comparar Schröder, Chirac e Blair com Köhl ou Mitterrand, sem os quais a União Económica e Monetária não teria nascido no tempo e da forma que nasceu. Pelo mau exemplo que os líderes britânico, alemão e francês representam para a UE, aí sim se filia a desconfiança em relação à reunião de Berlim. Porque se trata de personalidades erráticas, não podemos ter a certeza para onde eles querem conduzir a UE.
18.2.04
A emergência do sexismo feminista
Já em tempos escrevi (não no blogue) sobre a viabilidade de um movimento “masculinista” que reaja contra excessos feministas. Esses excessos que se agarram à “discriminação positiva” e não hesitam em torpedear os homens com um estatuto de menoridade. No passado domingo deparei com mais uma entronização do feminismo. Não de um feminismo exaltado, ao jeito dos anacrónicos movimentos de defesa dos direitos das mulheres. Foi um artigo de opinião de Maria Filomena Mónica (MFM), alguém que não costuma embarcar no barco histérico onde navegam as exacerbadas feministas do país.
A crer na exactidão das ciências que tratam a genética, adverte MFM, “os homens são apenas mulheres geneticamente modificadas”. Começou aqui a minha preocupação. Afinal os meus genes contêm em si imensos elementos femininos que, todavia, foram asfixiados durante a concepção, para vingar um malvado gene masculino que fez de mim homem? Se calhar é por isso que às vezes dou comigo convencido que tenho o famoso “sexto sentido” feminino...
Se todos os seres humanos que não são mulheres mais não são do que mulheres mascaradas de homens, sinto-me lançado no abismo. Ponho-me a pensar no que sentirá uma mulher lésbica. A natureza encarregou-se de a tornar “perfeita” como criação humana - porque é uma mulher. Porém, as mulheres homossexuais, especialmente aquelas que assumem “comportamentos masculinos”, devem viver amarradas a uma angustiante contradição interna: elas gostariam de ser homens.
E o que dizer dos homens que descaem para comportamentos efeminados? São homens, logo sobre eles caiu o manto diáfano da subversão genética. Mas preferiam ser mulheres, gostariam que o diabólico mecanismo genético que asfixia os genes femininos não tivesse sido desencadeado no seu caso particular. São homens a contra-gosto, decerto comprovando a asserção de MFM (e dos cientistas em que se apoia) de que todos os humanos são mulheres por definição.
Compreendo agora o alcance do axioma de MFM. Na transsexualidade, os casos que aparecem em público são de homens transformados em mulheres. São os homens que se sujeitam a dolorosas operações cirúrgicas e passam por um longo processo de ingestão de hormonas femininas, tudo para deixarem a sua condição masculina e abraçarem uma feminilidade que estava castrada pelas sinuosidades da natureza. Mas não se vê mulheres a surgirem transformadas em homens. A transsexualidade acaba por ser uma demonstração evidente de como somos todos mulheres em potencial!
MFM tenta provar a superioridade das mulheres com a vulnerabilidade do cromossoma Y, em contraponto com a solidez e indestrutibilidade do cromossoma X. A decrescente taxa de fertilidade dos homens é a evidência. E aventura-se num cenário dantesco (digo eu, não ela): “dentro de cerca 125.000 anos, os homens estarão extintos”! Escudando-se outra vez em estudos científicos, MFM tranquiliza a espécie humana. Na verdade, “no mundo científico, há quem defenda ser possível unir um óvulo a outro, em vez de o unir a um espermatozóide, mantendo assim viva a espécie humana, embora exclusivamente sob a forma feminina”.
Cá está, dentro dos tais 125.000 anos o mundo será finalmente perfeito, só com mulheres. Não restará um único espécime do género masculino para amostra. Então deixará de fazer sentido, finalmente, falar em desigualdade dos sexos. Também não fará sentido falar-se de homossexualidade. Se todas as pessoas serão mulheres, só há um sexo. Ou será que, para gáudio dos representantes dos direitos das homossexuais, essa será a sociedade perfeita, justamente porque não haverá heterossexualidade, restringida pelas artes da natureza que nos transformará a todos em pessoas do sexo feminino?
Tenho que confessar que a leitura do artigo de MFM me deixou profundamente baralhado!
A crer na exactidão das ciências que tratam a genética, adverte MFM, “os homens são apenas mulheres geneticamente modificadas”. Começou aqui a minha preocupação. Afinal os meus genes contêm em si imensos elementos femininos que, todavia, foram asfixiados durante a concepção, para vingar um malvado gene masculino que fez de mim homem? Se calhar é por isso que às vezes dou comigo convencido que tenho o famoso “sexto sentido” feminino...
Se todos os seres humanos que não são mulheres mais não são do que mulheres mascaradas de homens, sinto-me lançado no abismo. Ponho-me a pensar no que sentirá uma mulher lésbica. A natureza encarregou-se de a tornar “perfeita” como criação humana - porque é uma mulher. Porém, as mulheres homossexuais, especialmente aquelas que assumem “comportamentos masculinos”, devem viver amarradas a uma angustiante contradição interna: elas gostariam de ser homens.
E o que dizer dos homens que descaem para comportamentos efeminados? São homens, logo sobre eles caiu o manto diáfano da subversão genética. Mas preferiam ser mulheres, gostariam que o diabólico mecanismo genético que asfixia os genes femininos não tivesse sido desencadeado no seu caso particular. São homens a contra-gosto, decerto comprovando a asserção de MFM (e dos cientistas em que se apoia) de que todos os humanos são mulheres por definição.
Compreendo agora o alcance do axioma de MFM. Na transsexualidade, os casos que aparecem em público são de homens transformados em mulheres. São os homens que se sujeitam a dolorosas operações cirúrgicas e passam por um longo processo de ingestão de hormonas femininas, tudo para deixarem a sua condição masculina e abraçarem uma feminilidade que estava castrada pelas sinuosidades da natureza. Mas não se vê mulheres a surgirem transformadas em homens. A transsexualidade acaba por ser uma demonstração evidente de como somos todos mulheres em potencial!
MFM tenta provar a superioridade das mulheres com a vulnerabilidade do cromossoma Y, em contraponto com a solidez e indestrutibilidade do cromossoma X. A decrescente taxa de fertilidade dos homens é a evidência. E aventura-se num cenário dantesco (digo eu, não ela): “dentro de cerca 125.000 anos, os homens estarão extintos”! Escudando-se outra vez em estudos científicos, MFM tranquiliza a espécie humana. Na verdade, “no mundo científico, há quem defenda ser possível unir um óvulo a outro, em vez de o unir a um espermatozóide, mantendo assim viva a espécie humana, embora exclusivamente sob a forma feminina”.
Cá está, dentro dos tais 125.000 anos o mundo será finalmente perfeito, só com mulheres. Não restará um único espécime do género masculino para amostra. Então deixará de fazer sentido, finalmente, falar em desigualdade dos sexos. Também não fará sentido falar-se de homossexualidade. Se todas as pessoas serão mulheres, só há um sexo. Ou será que, para gáudio dos representantes dos direitos das homossexuais, essa será a sociedade perfeita, justamente porque não haverá heterossexualidade, restringida pelas artes da natureza que nos transformará a todos em pessoas do sexo feminino?
Tenho que confessar que a leitura do artigo de MFM me deixou profundamente baralhado!
17.2.04
Durão Barroso, Ferro Rodrigues e o destino do Pacto de Estabilidade e Crescimento
Os primeiros-ministros de Portugal, Espanha, Itália, Holanda, Polónia e Estónia redigiram uma carta ao presidente do Conselho Europeu. Apelam a um cumprimento escrupuloso do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), argumentando que o pacto é “um elemento essencial da governança económica da nossa União Económica e Monetária e uma condição necessária para o crescimento económico sustentado que todos prosseguimos. As suas regras deverão ser aplicadas consistentemente e numa base não-discriminatória”.
Aparentemente, trata-se de uma iniciativa que merece todos os encómios, por tentar esbater a desconfiança dos cidadãos ao saberem que a França e a Alemanha escaparam às sanções previstas no PEC. Apesar dos elogios, tenho dúvidas acerca da eficácia da carta. Alguns dos Estados membros que subscreveram esta carta não são o exemplo de países interessados num escrupuloso respeito do pacto. Tal será o caso de Portugal e da Itália, países que estão com a corda na garganta em termos da disciplina orçamental exigida pelo pacto. Faria sentido que estes países se aproveitassem da oportunidade criada pela França e pela Alemanha para aliviarem o cinto apertado, porque já não seriam penalizados – como o não foram a França e a Alemanha – por um défice excessivo.
No entanto, é necessário ir mais longe na análise das palavras contidas na carta. Quando os proponentes reclamam que as regras do PEC “deverão ser aplicadas (…) numa base não-discriminatória”, para Itália e Portugal esta afirmação deve ser entendida da seguinte forma: se a França e a Alemanha viram os seus défices excessivos perdoados, por maioria de razão também o deslizamento orçamental destes dois países mediterrânicos será merecedor do mesmo tratamento. O significado é diferente quando encarado na óptica dos governos espanhol e holandês. Ambos os países têm respeitado o clima de disciplina orçamental. Eles têm todo o interesse em que as regras do PEC sejam respeitadas sem qualquer interpretação sinuosa que, na essência, corresponda à sua desvirtuação. Só assim podem impedir que os maus alunos sejam premiados (por escaparem às sanções). Portanto, entre os subscritores da carta não existe coerência interna quanto à interpretação daquela frase, o que condena à nascença o sucesso da iniciativa.
As ondas de choque fizeram-se sentir na política doméstica. Ferro Rodrigues apareceu visivelmente incomodado com a participação do governo português. Compreende-se a reacção. Será uma forma de passar a esponja pela gestão caótica das finanças públicas dos governos de que ele também fez parte. Por outro lado, se é verdade que Sousa Franco vai ser o cabeça de lista do PS nas eleições para o Parlamento Europeu, há que criar as condições para que o resultado eleitoral dos socialistas não surja manchado pelas responsabilidades que esta personalidade teve no deslizamento das contas públicas nacionais. Ainda na semana passada foram várias as vozes que ergueram o dedo acusador a Sousa Franco. Teria sido ele, enquanto ministro das finanças, o verdadeiro responsável pela situação de descontrolo que foi herdada pelos seus sucessores.
Lamento que os políticos continuem a ter vistas curtas. Que privilegiem uma agenda própria que se divorcia dos interesses do país. A Ferro Rodrigues e ao actual PS interessa uma linha orientadora das finanças públicas que sublinha o papel das despesas públicas como instrumento vital para o crescimento do país. Ainda que esta visão seja cada vez mais questionada por mais e mais economistas, o PS agarra-se a esta tábua de salvação para mascarar a sua incompetência pela gestão passada. Mantém-se fiel a esta postura, ainda que ela seja a que piores consequências traz para o país.
Aparentemente, trata-se de uma iniciativa que merece todos os encómios, por tentar esbater a desconfiança dos cidadãos ao saberem que a França e a Alemanha escaparam às sanções previstas no PEC. Apesar dos elogios, tenho dúvidas acerca da eficácia da carta. Alguns dos Estados membros que subscreveram esta carta não são o exemplo de países interessados num escrupuloso respeito do pacto. Tal será o caso de Portugal e da Itália, países que estão com a corda na garganta em termos da disciplina orçamental exigida pelo pacto. Faria sentido que estes países se aproveitassem da oportunidade criada pela França e pela Alemanha para aliviarem o cinto apertado, porque já não seriam penalizados – como o não foram a França e a Alemanha – por um défice excessivo.
No entanto, é necessário ir mais longe na análise das palavras contidas na carta. Quando os proponentes reclamam que as regras do PEC “deverão ser aplicadas (…) numa base não-discriminatória”, para Itália e Portugal esta afirmação deve ser entendida da seguinte forma: se a França e a Alemanha viram os seus défices excessivos perdoados, por maioria de razão também o deslizamento orçamental destes dois países mediterrânicos será merecedor do mesmo tratamento. O significado é diferente quando encarado na óptica dos governos espanhol e holandês. Ambos os países têm respeitado o clima de disciplina orçamental. Eles têm todo o interesse em que as regras do PEC sejam respeitadas sem qualquer interpretação sinuosa que, na essência, corresponda à sua desvirtuação. Só assim podem impedir que os maus alunos sejam premiados (por escaparem às sanções). Portanto, entre os subscritores da carta não existe coerência interna quanto à interpretação daquela frase, o que condena à nascença o sucesso da iniciativa.
As ondas de choque fizeram-se sentir na política doméstica. Ferro Rodrigues apareceu visivelmente incomodado com a participação do governo português. Compreende-se a reacção. Será uma forma de passar a esponja pela gestão caótica das finanças públicas dos governos de que ele também fez parte. Por outro lado, se é verdade que Sousa Franco vai ser o cabeça de lista do PS nas eleições para o Parlamento Europeu, há que criar as condições para que o resultado eleitoral dos socialistas não surja manchado pelas responsabilidades que esta personalidade teve no deslizamento das contas públicas nacionais. Ainda na semana passada foram várias as vozes que ergueram o dedo acusador a Sousa Franco. Teria sido ele, enquanto ministro das finanças, o verdadeiro responsável pela situação de descontrolo que foi herdada pelos seus sucessores.
Lamento que os políticos continuem a ter vistas curtas. Que privilegiem uma agenda própria que se divorcia dos interesses do país. A Ferro Rodrigues e ao actual PS interessa uma linha orientadora das finanças públicas que sublinha o papel das despesas públicas como instrumento vital para o crescimento do país. Ainda que esta visão seja cada vez mais questionada por mais e mais economistas, o PS agarra-se a esta tábua de salvação para mascarar a sua incompetência pela gestão passada. Mantém-se fiel a esta postura, ainda que ela seja a que piores consequências traz para o país.
16.2.04
Mais atropelos às liberdades individuais (II): telemóveis e Internet
O governo manifestou a intenção de vigiar as comunicações, efectuadas por telemóvel ou através da Internet, de quem seja suspeito de certos crimes. O governo vem proclamar a necessidade de tais controlos em homenagem a interesses públicos que coincidem com a segurança colectiva. Tenta passar a mensagem que todos devemos condescender com a potencial intrusão da nossa esfera íntima. Ao darmos caução a esta intromissão estaremos a abonar padrões de maior segurança de que todos seremos beneficiários em última instância.
Pode-se até dizer que “quem não deve não teme”. Para quem não pretende estar envolvido em actividades ilícitas, a proposta da limitação das liberdades individuais do governo é compreensível e aceitável. O problema é que por erros de investigação, outras vezes por acidentes de percurso, inocentes são transformados em suspeitos. Neste caso, alguém que está de consciência limpa poderá a todo o momento ver a sua liberdade individual violada através do açambarcamento de dados íntimos que constam das conversas efectuadas através de telemóveis e (agora é a novidade) até através de dados transmitidos através da Internet (correio electrónico, chats, etc.).
Em meu entender, não merece a pena o sacrifício das liberdades individuais em nome de uma suposta segurança colectiva. Primeiro, porque tais preocupações securitárias podem esconder uma maior interferência na vida íntima de cada cidadão. Será uma forma de manter sitiada a sociedade em que vivemos. Segundo, porque a margem de discricionariedade implícita na proposta governamental encerra um capital de perigo. Receio que esta discricionariedade se transforme em pura arbitrariedade. Sem que existam meios eficazes para fiscalizar estes abusos de poder que as autoridades poderão cometer a todo o momento.
No rescaldo destas situações abusivas, quem fica a perder é a liberdade individual, por ficar desprotegida contra o longo braço da autoridade. Estamos assim num limiar entre o Estado de direito e o Estado polícia, que se mascara com as vestes do primeiro mas é, na prática, uma mera silhueta que vem perdendo o conteúdo de um verdadeiro Estado de direito.
É indiscutível que o centro-direita no poder tem passado dos limites, atropelando os direitos individuais, não hesitando em reforçar a autoridade do Estado. O que é suficiente para reprovar com veemência esta postura, verberando esta direita que não se consegue distinguir do intervencionismo das esquerdas. Contudo, esta linha de orientação não é um exclusivo desta direita. Sem resvalar para o terreno escorregadio da especulação, acredito que a esquerda moderada (de onde têm surgido as maiores críticas a estas propostas governamentais) teria um comportamento semelhante se estivesse no governo. Basta ver que Blair – ainda assim o farol inspirador da “terceira via” na qual se revêem muitos dos acólitos nacionais da esquerda moderada – não hesitou em emular os excessos securitários que começaram nos Estados Unidos após o 11 de Setembro de 2001.
Pode-se até dizer que “quem não deve não teme”. Para quem não pretende estar envolvido em actividades ilícitas, a proposta da limitação das liberdades individuais do governo é compreensível e aceitável. O problema é que por erros de investigação, outras vezes por acidentes de percurso, inocentes são transformados em suspeitos. Neste caso, alguém que está de consciência limpa poderá a todo o momento ver a sua liberdade individual violada através do açambarcamento de dados íntimos que constam das conversas efectuadas através de telemóveis e (agora é a novidade) até através de dados transmitidos através da Internet (correio electrónico, chats, etc.).
Em meu entender, não merece a pena o sacrifício das liberdades individuais em nome de uma suposta segurança colectiva. Primeiro, porque tais preocupações securitárias podem esconder uma maior interferência na vida íntima de cada cidadão. Será uma forma de manter sitiada a sociedade em que vivemos. Segundo, porque a margem de discricionariedade implícita na proposta governamental encerra um capital de perigo. Receio que esta discricionariedade se transforme em pura arbitrariedade. Sem que existam meios eficazes para fiscalizar estes abusos de poder que as autoridades poderão cometer a todo o momento.
No rescaldo destas situações abusivas, quem fica a perder é a liberdade individual, por ficar desprotegida contra o longo braço da autoridade. Estamos assim num limiar entre o Estado de direito e o Estado polícia, que se mascara com as vestes do primeiro mas é, na prática, uma mera silhueta que vem perdendo o conteúdo de um verdadeiro Estado de direito.
É indiscutível que o centro-direita no poder tem passado dos limites, atropelando os direitos individuais, não hesitando em reforçar a autoridade do Estado. O que é suficiente para reprovar com veemência esta postura, verberando esta direita que não se consegue distinguir do intervencionismo das esquerdas. Contudo, esta linha de orientação não é um exclusivo desta direita. Sem resvalar para o terreno escorregadio da especulação, acredito que a esquerda moderada (de onde têm surgido as maiores críticas a estas propostas governamentais) teria um comportamento semelhante se estivesse no governo. Basta ver que Blair – ainda assim o farol inspirador da “terceira via” na qual se revêem muitos dos acólitos nacionais da esquerda moderada – não hesitou em emular os excessos securitários que começaram nos Estados Unidos após o 11 de Setembro de 2001.
Mais atropelos às liberdades individuais (I): tabaco
O governo deu a conhecer uma proposta de lei que visa proibir o tabaco nos locais de trabalho. Apetece-me relatar uma experiência vivida em Londres, no ano passado. Por onde passasse havia sempre um magote de pessoas a fumar à porta dos prédios que alojam escritórios de empresas. Ao início estranhei a concentração. Depois informei-me. O governo de Blair, corporizando a sanha persecutória aos fumadores, aprovara legislação que proíbe o tabaco nos locais de trabalho. A reacção dos fumadores era a de interromperem as suas tarefas, deslocando-se até ao exterior para fumarem o cigarro da praxe.
Deixava deslizar os olhos pelas torres acima e contava os andares do edifício. Em muitos casos, vinte, trinta andares. Pus-me a imaginar as consequências desta lei higiénica. Imensas pessoas ausentando-se temporariamente do local de trabalho para o vício do fumo. Apanhar o elevador até à saída do prédio. Fumar o cigarro. Conviver com outros colegas que também se dedicavam o mesmo. Prolongar os momentos votados à degustação do cigarro, por entre uma conversa que se alonga por mais minutos do que os necessários. Reentrar no edifício e esperar pelo elevador. Finalmente, subir até ao local de trabalho. Só então retomar as tarefas.
Em todo este movimento (quantas vezes repetido ao dia?), quantos minutos de trabalho são perdidos? Quanta produtividade e riqueza nacional não são sacrificadas? Em nome de uma perseguição sanitária que tenta ostracizar os fumadores. Supostamente para proteger a saúde dos não fumadores. Supostamente para tornar os locais de trabalho imunes à poluição tabagista. Interrogo-me se não seria mais ajuizado criar, dentro das empresas, zonas reservadas aos fumadores, sem prejudicar tanto a produtividade das empresas.
Esta lei apenas cria as condições para que o país, como um todo, passe a produzir menos riqueza. Cabe, pois, a pergunta: estes anseios higiénicos são um imperativo tão prioritário que mereça o sacrifício da riqueza nacional? Não me parece. Mais ainda porque há uma outra dimensão que não pode ser omitida: a interferência ainda mais acentuada na esfera individual de cada pessoa que é fumadora. Aqui estou à vontade para falar contra a lei proposta pelo governo. Não sendo fumador, nem nunca o tendo sido, convivo melhor com os fumadores do que com os que exprimem publicamente o seu fundamentalismo anti-tabagista.
Em consequência desta perseguição anti-tabagista, os fumadores são levados à conclusão de que devem ser mais cuidadosos quando sacam de um cigarro. Sabendo que têm uma sociedade cada vez mais persecutória de olho neles, tudo se conjuga para que, espontaneamente, os fumadores sejam mais cuidadosos para não atentarem contra os interesses dos não fumadores. Se, por pressão social, os fumadores sentem uma obrigação de respeito para com os não fumadores, as leis não são para aqui chamadas.
Deixava deslizar os olhos pelas torres acima e contava os andares do edifício. Em muitos casos, vinte, trinta andares. Pus-me a imaginar as consequências desta lei higiénica. Imensas pessoas ausentando-se temporariamente do local de trabalho para o vício do fumo. Apanhar o elevador até à saída do prédio. Fumar o cigarro. Conviver com outros colegas que também se dedicavam o mesmo. Prolongar os momentos votados à degustação do cigarro, por entre uma conversa que se alonga por mais minutos do que os necessários. Reentrar no edifício e esperar pelo elevador. Finalmente, subir até ao local de trabalho. Só então retomar as tarefas.
Em todo este movimento (quantas vezes repetido ao dia?), quantos minutos de trabalho são perdidos? Quanta produtividade e riqueza nacional não são sacrificadas? Em nome de uma perseguição sanitária que tenta ostracizar os fumadores. Supostamente para proteger a saúde dos não fumadores. Supostamente para tornar os locais de trabalho imunes à poluição tabagista. Interrogo-me se não seria mais ajuizado criar, dentro das empresas, zonas reservadas aos fumadores, sem prejudicar tanto a produtividade das empresas.
Esta lei apenas cria as condições para que o país, como um todo, passe a produzir menos riqueza. Cabe, pois, a pergunta: estes anseios higiénicos são um imperativo tão prioritário que mereça o sacrifício da riqueza nacional? Não me parece. Mais ainda porque há uma outra dimensão que não pode ser omitida: a interferência ainda mais acentuada na esfera individual de cada pessoa que é fumadora. Aqui estou à vontade para falar contra a lei proposta pelo governo. Não sendo fumador, nem nunca o tendo sido, convivo melhor com os fumadores do que com os que exprimem publicamente o seu fundamentalismo anti-tabagista.
Em consequência desta perseguição anti-tabagista, os fumadores são levados à conclusão de que devem ser mais cuidadosos quando sacam de um cigarro. Sabendo que têm uma sociedade cada vez mais persecutória de olho neles, tudo se conjuga para que, espontaneamente, os fumadores sejam mais cuidadosos para não atentarem contra os interesses dos não fumadores. Se, por pressão social, os fumadores sentem uma obrigação de respeito para com os não fumadores, as leis não são para aqui chamadas.
14.2.04
Por este dia
Matinal,
com a aurora levitas
uma brisa refrescante.
Um sussurro embriagante,
deleite que traz a mim
uma imensa ternura.
Um porto,
refúgio onde lanço âncora
e aprendo a crescer.
Um olhar,
um olhar basta para a alquimia
que nos empossa reis do nosso mundo.
Esse olhar,
estremecimento singular
dos tempos que apetece imortalizar.
Vagueando na escuridão,
tacteando a respiração,
encontramos o que somos.
Mar imenso,
revolto de emoções,
tempo e lugar que nos pertencem.
Só a nós.
com a aurora levitas
uma brisa refrescante.
Um sussurro embriagante,
deleite que traz a mim
uma imensa ternura.
Um porto,
refúgio onde lanço âncora
e aprendo a crescer.
Um olhar,
um olhar basta para a alquimia
que nos empossa reis do nosso mundo.
Esse olhar,
estremecimento singular
dos tempos que apetece imortalizar.
Vagueando na escuridão,
tacteando a respiração,
encontramos o que somos.
Mar imenso,
revolto de emoções,
tempo e lugar que nos pertencem.
Só a nós.
13.2.04
(In)segurança social
A história já tem quase uma semana. Relatava o desespero de uma mãe adolescente a quem foi retirada a guarda da sua filha com poucos dias de vida. A segurança social, com a cobertura do tribunal de menores, terá encontrado motivos para subtrair a recém-nascida. À falta de informações oficiais, presume-se que os pais não podiam acautelar os interesses do bebé.
Fico perturbado com estas intervenções discricionárias de organismos estatais que têm competência para interferirem em esferas íntimas da vida pessoal. Questiono-me se os cinzentos funcionários, do lugar esconso onde trabalham, estão realmente habilitados a tecer estes juízos que têm consequências tão gravosas. Os mais optimistas, e crentes nas potencialidades da segurança social para o assunto em apreço, dirão são pessoas bem formadas, incapazes de tomar decisões levianas. Permito-me duvidar deste pressuposto. Por mais que tomem contacto com a realidade que são levados a investigar, estes funcionários apenas ficam com um contacto superficial, o resultado de uns escassos minutos ou horas de convivência com a situação analisada. Que são insuficientes para rivalizar com o conhecimento mais profundo, feito de meses atrás de meses, de outras pessoas que convivem mais de perto com esta situação.
De acordo com os jovens pais, o que poderá estar na base da decisão da segurança social foi a fuga da maternidade por eles decidida. Confessam que saíram à socapa, receando que a sua filha lhes fosse retirada ainda na maternidade. Não posso acreditar que este receio fosse fruto da imaginação delirante deste casal. Certamente que ouviram alguns comentários de pessoas “bem informadas”, comentários que terão desencadeado o pânico.
É aqui que a inquietação sobe de tom. Com que fundamento as pessoas que alimentaram aqueles rumores puderam alicerçar um juízo tão seguro acerca da falta de condições do jovem casal para ficar com a guarda da sua filha? Terá havido investigação no terreno para apurar se a criança merecia ficar com os seus pais naturais? Teria havido tempo útil para desencadear todos os passos que levassem a este juízo definitivo? Este é um caso que foge ao traço distintivo que caracteriza as decisões da função pública: um retardamento exasperante. Neste caso, tudo se passou com uma velocidade vertiginosa. De tal forma que a decisão terá pecado pela sua extemporaneidade prematura.
A segurança social existe, neste específico domínio, para proteger os interesses das crianças indefesas perante o desmazelo dos seus progenitores. Ao mesmo tempo age em nome de uma consciência colectiva que só fica apaziguada quando sente que as inocentes vítimas ficam protegidas dos desmandos dos seus pais. Confesso que, neste caso, não me senti reconfortado com a intervenção da segurança social. Pelo contrário, notei uma sensação de incómodo, adicionada por um tumulto interior, reprovando a prepotência deste tipo de actuações.
Se a distância impede a tomada de decisões conscientes, como podem estes zelosos funcionários cometer a imprudência de, em tão pouco tempo, com um inédito desembaraço, formular um juízo com consequências tão graves? É nisto que consiste a segurança social? Para mim, é mais sinónimo de insegurança social!
Fico perturbado com estas intervenções discricionárias de organismos estatais que têm competência para interferirem em esferas íntimas da vida pessoal. Questiono-me se os cinzentos funcionários, do lugar esconso onde trabalham, estão realmente habilitados a tecer estes juízos que têm consequências tão gravosas. Os mais optimistas, e crentes nas potencialidades da segurança social para o assunto em apreço, dirão são pessoas bem formadas, incapazes de tomar decisões levianas. Permito-me duvidar deste pressuposto. Por mais que tomem contacto com a realidade que são levados a investigar, estes funcionários apenas ficam com um contacto superficial, o resultado de uns escassos minutos ou horas de convivência com a situação analisada. Que são insuficientes para rivalizar com o conhecimento mais profundo, feito de meses atrás de meses, de outras pessoas que convivem mais de perto com esta situação.
De acordo com os jovens pais, o que poderá estar na base da decisão da segurança social foi a fuga da maternidade por eles decidida. Confessam que saíram à socapa, receando que a sua filha lhes fosse retirada ainda na maternidade. Não posso acreditar que este receio fosse fruto da imaginação delirante deste casal. Certamente que ouviram alguns comentários de pessoas “bem informadas”, comentários que terão desencadeado o pânico.
É aqui que a inquietação sobe de tom. Com que fundamento as pessoas que alimentaram aqueles rumores puderam alicerçar um juízo tão seguro acerca da falta de condições do jovem casal para ficar com a guarda da sua filha? Terá havido investigação no terreno para apurar se a criança merecia ficar com os seus pais naturais? Teria havido tempo útil para desencadear todos os passos que levassem a este juízo definitivo? Este é um caso que foge ao traço distintivo que caracteriza as decisões da função pública: um retardamento exasperante. Neste caso, tudo se passou com uma velocidade vertiginosa. De tal forma que a decisão terá pecado pela sua extemporaneidade prematura.
A segurança social existe, neste específico domínio, para proteger os interesses das crianças indefesas perante o desmazelo dos seus progenitores. Ao mesmo tempo age em nome de uma consciência colectiva que só fica apaziguada quando sente que as inocentes vítimas ficam protegidas dos desmandos dos seus pais. Confesso que, neste caso, não me senti reconfortado com a intervenção da segurança social. Pelo contrário, notei uma sensação de incómodo, adicionada por um tumulto interior, reprovando a prepotência deste tipo de actuações.
Se a distância impede a tomada de decisões conscientes, como podem estes zelosos funcionários cometer a imprudência de, em tão pouco tempo, com um inédito desembaraço, formular um juízo com consequências tão graves? É nisto que consiste a segurança social? Para mim, é mais sinónimo de insegurança social!
12.2.04
Os caçadores de cães – essa praga
Já aconteceu por duas vezes. Logo pela alvorada, quando as baterias estão no início do carregamento para mais um dia de trabalho, dou de caras com a brigada municipal de captura de cães. Em ambas as vezes, felizmente, os três cães sem dono que andam pelas redondezas conseguem escapar. Confesso o meu incómodo por esta sanha persecutória, na senda do “higienismo” que se teima em impor à sociedade.
Os três cães que andam na rua são alimentados por pessoas que gostam de animais. Construiu-se um afecto mínimo entre estas pessoas e os cães. Os três cães são uma comunidade solidária. Nisto fazem inveja aos humanos que se gabam de serem o expoente máximo da organização social e que, todavia, são o melhor exemplo da incapacidade para viver em sociedade. Observar o comportamento destes cães chega a ser comovedor. Ver como eles se protegem reciprocamente, sempre na alçada da figura tutelar do cão mais velho. Como exibem uma dependência recíproca, exteriorizando a necessidade de companhia para combater a solidão. E nunca, nestes dois anos de convivência com os cães, assisti a uma luta entre eles.
Estas brigadas de caçadores dos cães sem dono que erram pelas ruas da cidade causam-me uma profunda repugnância. Vinga a ideia de que os animais sem dono não têm direito à existência. Preocupa-me muito mais a insegurança que sinto pelo facto de ser mal governando por pessoas com escassa inteligência e que estão nos antípodas da competência. Sinto-me mais afectado pela ausente “higiene mental” de tantos quantos tentam esconder debaixo do tapete a sua incompetência, combatendo a sua incapacidade através da perseguição que dão aos animais.
Não vejo esta ânsia higiénica como um sinal civilizacional. Vejo-a como mais uma manifestação de espezinhamento dos direitos dos animais, em nome da suposta ascendência da espécie humana e das suas prioridades, sempre colocadas num patamar superior às das restantes espécies animais. Duvido que o antropocentrismo reinante seja um sinal de uma civilização moderna e aberta.
As brigadas que dão luta sem quartel aos cães sem dono são uma forma de encontrar emprego para alguns dos encostados deste mundo que de outra forma não estariam a fazer nada nos serviços camarários. Mesmo que tenham uma inteligência abaixo de cão (sem menosprezo para o canídeo), como o atesta este episódio surrealista que hoje se passou comigo. Ao ver que a brigada já estava com as redes de captura no exterior, apressei-me a descer com a minha cadela, só para sondar os acontecimentos. Contra o que é usual, desta vez levei a cadela atrelada. Não fossem os zelosos funcionários públicos implicar com uma cadela que, apesar de ter dono, circulava livre pela rua. Quando me acerquei do bando, a cadela antecipou-se e contornou a carrinha, surpreendendo três dos carrascos. Um deles disparou:
- O que é isto?!
- “Isto” (acentuei com desdém) tem dono – retorqui.
- Pois, mas a trela tem que dar menos espaço ao cão. Ele pode morder uma pessoa se tiver tanta margem de manobra.
Na cabeça oca daquela criatura, existe uma regra que estabelece a distância mínima que os donos de cães devem obedecer quando os passeiam pela rua. Estive para lhe perguntar se existe uma distância padronizada, estilo 25 centímetros, ou se esta regra depende apenas do livre arbítrio deles, armados em pseudo-agentes da autoridade. Mas não quis dar troco a tão reles criatura, até para não estragar ainda mais o dia.
Os três cães que andam na rua são alimentados por pessoas que gostam de animais. Construiu-se um afecto mínimo entre estas pessoas e os cães. Os três cães são uma comunidade solidária. Nisto fazem inveja aos humanos que se gabam de serem o expoente máximo da organização social e que, todavia, são o melhor exemplo da incapacidade para viver em sociedade. Observar o comportamento destes cães chega a ser comovedor. Ver como eles se protegem reciprocamente, sempre na alçada da figura tutelar do cão mais velho. Como exibem uma dependência recíproca, exteriorizando a necessidade de companhia para combater a solidão. E nunca, nestes dois anos de convivência com os cães, assisti a uma luta entre eles.
Estas brigadas de caçadores dos cães sem dono que erram pelas ruas da cidade causam-me uma profunda repugnância. Vinga a ideia de que os animais sem dono não têm direito à existência. Preocupa-me muito mais a insegurança que sinto pelo facto de ser mal governando por pessoas com escassa inteligência e que estão nos antípodas da competência. Sinto-me mais afectado pela ausente “higiene mental” de tantos quantos tentam esconder debaixo do tapete a sua incompetência, combatendo a sua incapacidade através da perseguição que dão aos animais.
Não vejo esta ânsia higiénica como um sinal civilizacional. Vejo-a como mais uma manifestação de espezinhamento dos direitos dos animais, em nome da suposta ascendência da espécie humana e das suas prioridades, sempre colocadas num patamar superior às das restantes espécies animais. Duvido que o antropocentrismo reinante seja um sinal de uma civilização moderna e aberta.
As brigadas que dão luta sem quartel aos cães sem dono são uma forma de encontrar emprego para alguns dos encostados deste mundo que de outra forma não estariam a fazer nada nos serviços camarários. Mesmo que tenham uma inteligência abaixo de cão (sem menosprezo para o canídeo), como o atesta este episódio surrealista que hoje se passou comigo. Ao ver que a brigada já estava com as redes de captura no exterior, apressei-me a descer com a minha cadela, só para sondar os acontecimentos. Contra o que é usual, desta vez levei a cadela atrelada. Não fossem os zelosos funcionários públicos implicar com uma cadela que, apesar de ter dono, circulava livre pela rua. Quando me acerquei do bando, a cadela antecipou-se e contornou a carrinha, surpreendendo três dos carrascos. Um deles disparou:
- O que é isto?!
- “Isto” (acentuei com desdém) tem dono – retorqui.
- Pois, mas a trela tem que dar menos espaço ao cão. Ele pode morder uma pessoa se tiver tanta margem de manobra.
Na cabeça oca daquela criatura, existe uma regra que estabelece a distância mínima que os donos de cães devem obedecer quando os passeiam pela rua. Estive para lhe perguntar se existe uma distância padronizada, estilo 25 centímetros, ou se esta regra depende apenas do livre arbítrio deles, armados em pseudo-agentes da autoridade. Mas não quis dar troco a tão reles criatura, até para não estragar ainda mais o dia.
11.2.04
“Iniciativa Portugal”: aplausos, ou apenas “mais do mesmo”?
Ao ler relatos da conferência de ontem, a sensação é agridoce. Por um lado há iniciativas louváveis. Em contrapartida, outras propostas são encaradas com alguma perplexidade (o inusitado desmantelamento do sigilo bancário para feitos fiscais). Em termos gerais, o principal motivo de decepção vem da ligação entre a mudança necessária e uma postura diferenciada do Estado.
As empresas sentem amiúde a sua iniciativa tolhida pelos obstáculos impostos pela presença excessiva do Estado. Por isso, os empresários são sensíveis a uma presença menos visível, menos obstrutiva, por parte do Estado. Assim se compreende que estes sectores reclamem do Estado uma postura menos interventiva, julgando que o reforço da sua competitividade passa por uma diminuição das barreiras levantadas pelo Estado. Mas, por outro lado, as atenções continuam excessivamente centradas no papel do Estado. As empresas deviam desviar a sua atenção para o impulso que elas, como representantes da sociedade civil, podem dar para o desenvolvimento do país.
Inquieta-me observar que agentes tão proeminentes da sociedade civil não resistam ao rebaixamento perante a suposta relevância do Estado. Neles parece ser difícil prosperar um frémito de mudança. E assim continuamos mergulhados num velho problema que nos destrói: sempre o Estado, para o mal ou para o bem, mas sempre o Estado como peça central do jogo em que todos os outros actores se colocam voluntariamente numa posição secundária. Não é este o caminho para que a sociedade civil funcione como o motor da mudança.
A ideia mais positiva da conferência prende-se com uma proposta que associa as despesas públicas às receitas fiscais necessárias para o seu financiamento. De acordo com esta proposta, “o orçamento de Estado deve mostrar que carga fiscal será necessária para pagar todos os custos assumidos pelo Estado com repercussão futura. Esta análise de redistribuição temporal da carga fiscal dos contribuintes deverá ser feita todos os anos, em anexo ao orçamento. As contas geracionais estimam o valor actual que cada contribuinte terá de pagar de imposto ao longo da sua vida e os benefícios de que vai usufruir”.
As virtudes são inumeráveis. O actual quadro mental seria destruído. Deixaria de se avançar no escuro para projectos que implicam a assunção de despesas, mesmo sem saber se no futuro haverá receita necessária para o respectivo financiamento. Com esta postura, a mentalidade vigente que norteia um comportamento irresponsável dos agentes políticos seria alterada. Não haveria lugar a quem cauciona a atitude do “gastamos sem ter dinheiro”, porque o encargo será pago algures no futuro, por alguém que não conhecemos, sem ser necessário apurar o sacrifício que daí resulta.
No rescaldo fica a pairar no ar a sensação de déja vu. O balanço da “Iniciativa Portugal” trouxe-me a recordação do Relatório Porter, divulgado há mais de dez anos. Tal como então, parece que o receituário para a prosperidade do país se mantém, com meras alterações de pormenor. Se isto é sinal de falta de imaginação da geração mais jovem de empresários e altos quadros, ou se é apenas sinónimo de letargia nos anos que medeiam entre o Relatório Porter e a realização desta conferência, é uma dúvida que permanece cintilante na linha do horizonte.
As empresas sentem amiúde a sua iniciativa tolhida pelos obstáculos impostos pela presença excessiva do Estado. Por isso, os empresários são sensíveis a uma presença menos visível, menos obstrutiva, por parte do Estado. Assim se compreende que estes sectores reclamem do Estado uma postura menos interventiva, julgando que o reforço da sua competitividade passa por uma diminuição das barreiras levantadas pelo Estado. Mas, por outro lado, as atenções continuam excessivamente centradas no papel do Estado. As empresas deviam desviar a sua atenção para o impulso que elas, como representantes da sociedade civil, podem dar para o desenvolvimento do país.
Inquieta-me observar que agentes tão proeminentes da sociedade civil não resistam ao rebaixamento perante a suposta relevância do Estado. Neles parece ser difícil prosperar um frémito de mudança. E assim continuamos mergulhados num velho problema que nos destrói: sempre o Estado, para o mal ou para o bem, mas sempre o Estado como peça central do jogo em que todos os outros actores se colocam voluntariamente numa posição secundária. Não é este o caminho para que a sociedade civil funcione como o motor da mudança.
A ideia mais positiva da conferência prende-se com uma proposta que associa as despesas públicas às receitas fiscais necessárias para o seu financiamento. De acordo com esta proposta, “o orçamento de Estado deve mostrar que carga fiscal será necessária para pagar todos os custos assumidos pelo Estado com repercussão futura. Esta análise de redistribuição temporal da carga fiscal dos contribuintes deverá ser feita todos os anos, em anexo ao orçamento. As contas geracionais estimam o valor actual que cada contribuinte terá de pagar de imposto ao longo da sua vida e os benefícios de que vai usufruir”.
As virtudes são inumeráveis. O actual quadro mental seria destruído. Deixaria de se avançar no escuro para projectos que implicam a assunção de despesas, mesmo sem saber se no futuro haverá receita necessária para o respectivo financiamento. Com esta postura, a mentalidade vigente que norteia um comportamento irresponsável dos agentes políticos seria alterada. Não haveria lugar a quem cauciona a atitude do “gastamos sem ter dinheiro”, porque o encargo será pago algures no futuro, por alguém que não conhecemos, sem ser necessário apurar o sacrifício que daí resulta.
No rescaldo fica a pairar no ar a sensação de déja vu. O balanço da “Iniciativa Portugal” trouxe-me a recordação do Relatório Porter, divulgado há mais de dez anos. Tal como então, parece que o receituário para a prosperidade do país se mantém, com meras alterações de pormenor. Se isto é sinal de falta de imaginação da geração mais jovem de empresários e altos quadros, ou se é apenas sinónimo de letargia nos anos que medeiam entre o Relatório Porter e a realização desta conferência, é uma dúvida que permanece cintilante na linha do horizonte.
O amor e o Estado – as voltas do desamor
Num texto brilhante, publicado no Diário de Notícias, Miguel Poiares Maduro faz uma reflexão mordaz sobre o desamor que atinge tanta gente. Num texto impregnado de um humor corrosivo, Poiares Maduro questiona a ausência do Estado na regulamentação do amor. Pois o amor (melhor, os seus desencontros) é tantas vezes causa de maleitas que deprimem o ser humano. O Estado não existe para suprir as deficiências da sociedade que impedem o bem-estar?
Se o Estado interviesse no amor, levando até ao fim a sua saga da justiça social e da igualdade forçada, devia garantir um mínimo de amor a todas as pessoas. Seria como uma espécie de redistribuição, só que em vez de operar sobre o rendimento actuaria sobre o amor: tirar aos mais afortunados para distribuir pelos que andam desalinhados com o amor.
Interrogo-me: porque não olhar para o exemplo do amor, plano de total passividade do Estado, e estender esta linha de conduta para outros domínios em que, também neles, devia vingar o respeito pelo livre arbítrio de cada indivíduo? Tal como no amor, em que é o íntimo de cada um que impera, em muitos outros domínios o Estado devia pôr-se à margem para não interferir com a esfera privada de cada pessoa. O Estado está – e bem – alheado das sinuosidades do amor. Devia aprender com esta lição e abdicar da intervenção em tantos outros domínios.
Nunca se sabe, nos tempos que correm, se a evolução é no sentido contrário. Quem sabe se, num dia destes, até no amor o Estado vai meter o seu bedelho…
Se o Estado interviesse no amor, levando até ao fim a sua saga da justiça social e da igualdade forçada, devia garantir um mínimo de amor a todas as pessoas. Seria como uma espécie de redistribuição, só que em vez de operar sobre o rendimento actuaria sobre o amor: tirar aos mais afortunados para distribuir pelos que andam desalinhados com o amor.
Interrogo-me: porque não olhar para o exemplo do amor, plano de total passividade do Estado, e estender esta linha de conduta para outros domínios em que, também neles, devia vingar o respeito pelo livre arbítrio de cada indivíduo? Tal como no amor, em que é o íntimo de cada um que impera, em muitos outros domínios o Estado devia pôr-se à margem para não interferir com a esfera privada de cada pessoa. O Estado está – e bem – alheado das sinuosidades do amor. Devia aprender com esta lição e abdicar da intervenção em tantos outros domínios.
Nunca se sabe, nos tempos que correm, se a evolução é no sentido contrário. Quem sabe se, num dia destes, até no amor o Estado vai meter o seu bedelho…
10.2.04
A solução para o sector público: reforma ou vassourada?
Já bastava o senso comum, a simples observação da realidade, a sensibilidade de cada cidadão ao tomar contacto com a administração pública. Agora surgiu um relatório do Banco Central Europeu a confirmar esta percepção com dados objectivos. Comparado com uma média de vinte e três países da OCDE, o sector público português gasta mais 20% do que necessita. Se a administração pública nacional fosse tão eficiente como a média daquela amostra de países, ela necessitava apenas de 80% da despesa pública que actualmente é consumida para sustentar este monstro iníquo. Seria meio caminho andado para não termos os problemas de finanças públicas que têm angustiado o país com a corda na garganta.
A leitura da síntese do relatório confirma a sensação de mau estar que impera quando somos levados ao contacto com a administração pública. Campeia uma imagem de desperdício de recursos, uma administração muito pesada, repleta de ineficiências. Uma administração pública que parece estar ao serviço de quem lá trabalha, sempre à frente dos interesses daqueles que devem ser servidos – os utentes, os cidadãos, aqueles que com os seus impostos alimentam o funcionamento da administração pública.
É tempo de mostrar à população portuguesa que as falhas do Estado são ainda mais danosas do que as falhas do mercado. Porque a administração pública consome de forma arbitrária (logo, anti-democrática) avultados recursos que se subtraem à riqueza potencial do país. Temos um Estado omnipresente, uivando constantemente ao ouvido de todos nós. Para que nunca esqueçamos que estamos a viver sob a alçada do paternalista Estado português. O extremo desta dominação estatal é o seu braço orgânico, o sector público que tem o tamanho de um elefante idoso que carrega a sua obesidade numa passada lenta, desconjuntada e torpe. Um elefante que não hesita em pisar os cidadãos, sem se preocupar com as consequências dos atropelos.
Um Estado com esta administração pública afasta-se das garantias teoricamente previstas pelo Estado de direito, e de que os cidadãos são os beneficiários. Perante as arbitrariedades da administração pública, perante os repetidos casos de incompetência, cada vez mais temos mais Estado dentro do país. Para muitos, estou certo, a ambição seria fazer uma coincidência total entre o país e o Estado. Para mim é o pesadelo. E quanto menos Estado existir neste país, maior será a liberdade individual. Menores serão os atentados à livre iniciativa que, essa sim, é geradora de bem-estar, de emprego, de igualdade de oportunidades entre todos os cidadãos.
Se, no futuro, se encontrar a coragem política para proceder a uma vassourada (não uma simples reforma) na administração pública portuguesa, criando as condições para que ela deixe de ser um monstro sagrado que se alimenta da população, o relatório do Banco Central Europeu será louvado como a pedrada no charco que despertou as consciências de uma anestesia colectiva.
A leitura da síntese do relatório confirma a sensação de mau estar que impera quando somos levados ao contacto com a administração pública. Campeia uma imagem de desperdício de recursos, uma administração muito pesada, repleta de ineficiências. Uma administração pública que parece estar ao serviço de quem lá trabalha, sempre à frente dos interesses daqueles que devem ser servidos – os utentes, os cidadãos, aqueles que com os seus impostos alimentam o funcionamento da administração pública.
É tempo de mostrar à população portuguesa que as falhas do Estado são ainda mais danosas do que as falhas do mercado. Porque a administração pública consome de forma arbitrária (logo, anti-democrática) avultados recursos que se subtraem à riqueza potencial do país. Temos um Estado omnipresente, uivando constantemente ao ouvido de todos nós. Para que nunca esqueçamos que estamos a viver sob a alçada do paternalista Estado português. O extremo desta dominação estatal é o seu braço orgânico, o sector público que tem o tamanho de um elefante idoso que carrega a sua obesidade numa passada lenta, desconjuntada e torpe. Um elefante que não hesita em pisar os cidadãos, sem se preocupar com as consequências dos atropelos.
Um Estado com esta administração pública afasta-se das garantias teoricamente previstas pelo Estado de direito, e de que os cidadãos são os beneficiários. Perante as arbitrariedades da administração pública, perante os repetidos casos de incompetência, cada vez mais temos mais Estado dentro do país. Para muitos, estou certo, a ambição seria fazer uma coincidência total entre o país e o Estado. Para mim é o pesadelo. E quanto menos Estado existir neste país, maior será a liberdade individual. Menores serão os atentados à livre iniciativa que, essa sim, é geradora de bem-estar, de emprego, de igualdade de oportunidades entre todos os cidadãos.
Se, no futuro, se encontrar a coragem política para proceder a uma vassourada (não uma simples reforma) na administração pública portuguesa, criando as condições para que ela deixe de ser um monstro sagrado que se alimenta da população, o relatório do Banco Central Europeu será louvado como a pedrada no charco que despertou as consciências de uma anestesia colectiva.
9.2.04
Uma história tocante em Angola
A história passou-se em Angola, numa povoação do interior conhecida como “terra do fim do mundo”. Luísa era a personagem central: uma angolana que tinha andado em bolandas nos últimos trinta anos, quando a Unita a sequestrou e depois sitiou apartando-a da sua família. Foram anos de desespero e angústia para Luísa e os seus familiares. À medida que os anos iam passando e que as notícias de Luísa se perdiam na vã esperança de uma boa nova, alimentavam a sensação de que jamais a veriam com vida.
Mas eis que, por artes de magia, deu-se o reencontro. Ao jeito do famoso programa de televisão que colocava familiares desencontrados no mesmo caminho, a delegação da RTP em Luanda prestou um inestimável serviço público. Tudo foi relatado com o dramatismo que convém, para inflamar ainda mais os corações ávidos de sensações fortes, que jorram com intensidade quando estes reencontros ocorrem. As câmaras da televisão testemunharam a enxurrada de emoções: quando Luísa se encontrou com a irmã que já não via há trinta anos; já em Luanda, quando foi ao encontro dos seus velhos pais. A informação desbravou o terreno da dramatização, servida num prato com fecunda afectividade, salpicada das lágrimas ali vertidas que eram o sal da notícia.
Só não consegui perceber se havia mais alguma mensagem nas entrelinhas. A ideia era enfatizar que este reencontro tardio se proporcionou porque já não há guerra no território angolano. O que só foi possível porque cessaram as atrocidades cometidas pela Unita, após a prestimosa acção militar levada a cabo pelo MPLA. É esta interrogação que ficou a pairar: queria a reportagem mostrar que no conflito angolano havia bons e maus, e que este dualismo se encaixa na distinção entre os vitoriosos e os derrotados?
Desci à terra e desliguei-me da aura de romantismo impregnada no episódio de Luísa. Afinal a história esconde uma mensagem subliminar: a derrota da Unita como condição para a pacificação de um território que viveu tantos anos asfixiado e consumido até às entranhas pelos algozes de um conflito desprezível. Como seria bom relembrar que não houve bons e maus neste conflito, que ambas as partes se mereciam uma à outra (porque ambas eram genuinamente más). Seria bom, em homenagem ao rigor, que a jornalista deixasse o seu testemunho de indignação, metendo no mesmo saco os criminosos de um e do outro lado do conflito, os verdadeiros responsáveis por esta e tantas outras situações de sacrifício de pessoas inocentes.
Como seria também ajuizado levantar a questão: está Portugal isento de responsabilidades por tudo o que se passou nos anos da sangrenta guerra civil angolana? A inteligência dominante logo surge, expedita, amordaçando os que ousam levantar a ponta do véu sobre a (ir)responsabilidade da descolonização que protagonizámos. Politicamente correcto é dar como adquirido que foi “a descolonização possível”. Mais ainda politicamente correcto porque as personagens envolvidas no processo são pessoas que estão acima de qualquer suspeita, de acordo com as convenções estabelecidas. Como se fossem o património genético da democracia legada pela revolução de Abril de 1974. Como se fosse suficiente para passar uma esponja sobre o que dizem e o que fazem, edificando um manto de “inimputabilidade social” que os coloca à margem da crítica.
Mas eis que, por artes de magia, deu-se o reencontro. Ao jeito do famoso programa de televisão que colocava familiares desencontrados no mesmo caminho, a delegação da RTP em Luanda prestou um inestimável serviço público. Tudo foi relatado com o dramatismo que convém, para inflamar ainda mais os corações ávidos de sensações fortes, que jorram com intensidade quando estes reencontros ocorrem. As câmaras da televisão testemunharam a enxurrada de emoções: quando Luísa se encontrou com a irmã que já não via há trinta anos; já em Luanda, quando foi ao encontro dos seus velhos pais. A informação desbravou o terreno da dramatização, servida num prato com fecunda afectividade, salpicada das lágrimas ali vertidas que eram o sal da notícia.
Só não consegui perceber se havia mais alguma mensagem nas entrelinhas. A ideia era enfatizar que este reencontro tardio se proporcionou porque já não há guerra no território angolano. O que só foi possível porque cessaram as atrocidades cometidas pela Unita, após a prestimosa acção militar levada a cabo pelo MPLA. É esta interrogação que ficou a pairar: queria a reportagem mostrar que no conflito angolano havia bons e maus, e que este dualismo se encaixa na distinção entre os vitoriosos e os derrotados?
Desci à terra e desliguei-me da aura de romantismo impregnada no episódio de Luísa. Afinal a história esconde uma mensagem subliminar: a derrota da Unita como condição para a pacificação de um território que viveu tantos anos asfixiado e consumido até às entranhas pelos algozes de um conflito desprezível. Como seria bom relembrar que não houve bons e maus neste conflito, que ambas as partes se mereciam uma à outra (porque ambas eram genuinamente más). Seria bom, em homenagem ao rigor, que a jornalista deixasse o seu testemunho de indignação, metendo no mesmo saco os criminosos de um e do outro lado do conflito, os verdadeiros responsáveis por esta e tantas outras situações de sacrifício de pessoas inocentes.
Como seria também ajuizado levantar a questão: está Portugal isento de responsabilidades por tudo o que se passou nos anos da sangrenta guerra civil angolana? A inteligência dominante logo surge, expedita, amordaçando os que ousam levantar a ponta do véu sobre a (ir)responsabilidade da descolonização que protagonizámos. Politicamente correcto é dar como adquirido que foi “a descolonização possível”. Mais ainda politicamente correcto porque as personagens envolvidas no processo são pessoas que estão acima de qualquer suspeita, de acordo com as convenções estabelecidas. Como se fossem o património genético da democracia legada pela revolução de Abril de 1974. Como se fosse suficiente para passar uma esponja sobre o que dizem e o que fazem, edificando um manto de “inimputabilidade social” que os coloca à margem da crítica.
6.2.04
Devem os ex-comunistas ser banidos das instituições europeias?
Li e fiquei inquieto: o Partido Popular Europeu (PPE), que reúne os partidos de inspiração democrata-cristã, quer impedir a presença de ex-comunistas nas instituições da União Europeia (UE). É nos países de leste que em Maio vão aderir à UE que o PPE tem a sua atenção focada. Nas últimas semanas os novos Estados membros têm avançados os nomes dos seus representantes na Comissão Europeia. O alarme subiu de tom quando a Estónia indicou o ex-primeiro ministro (e membro do Partido Comunista da União Soviética entre 1972 e 1990), um senhor chamado Siim Kallas.
Parece que o PPE quer imitar a lamentável atitude, na altura protagonizada pela Internacional Socialista, a propósito da censura contra o governo austríaco composto pelos democratas-cristãos de Schüssel e pelos neo-nazis de Jörg Haider. Então como agora a minha reacção só pode ser a mesma: de reprovação total destes agentes que se perfilam como guardiães da boa consciência democrática.
Julgando-se no direito de sentenciar quem pode ser incluído no jogo democrático e quem dele deve ser excluído, alimentam uma perigosa marcha de intolerância que, afinal, pouco os distingue destas facções radicais e decerto anti-democráticas que eles pretendem marginalizar. Não é assim que a democracia se diferencia dos totalitarismos que diz combater. Ao dar mostras de tamanha intolerância em relação a facções pouco sensíveis ao jogo democrático, é o próprio regime democrático (e os seus intérpretes) que se enquistam numa contradição insanável – a de actuarem com tanta intolerância como os intolerantes que querem banir do mapa eleitoral e político. É a auto-negação da democracia por quem se anuncia tão preocupado com a sua integridade.
Como pode alguém interferir nos assuntos internos de um país soberano, pondo em causa as decisões de um governo que está legitimado pela força do escrutínio popular? Alguém interioriza o direito de, em nome dos interesses "civilizacionais" que corporizam o regime democrático e o Estado de direito, sancionar a validade de decisões de outros países. Estas decisões são pesadas numa báscula da democraticidade que encerra alguma arbitrariedade. Se assim é, caminhamos para um precipício sem fundo. Algum dia, as eleições realizadas nos países podem ver os seus resultados questionados pelo discricionário voluntarismo desta consciência invisível. A democracia vê a sua essência negada porque certos valores são melindrados pelo resultado de um sufrágio popular.
O problema está, também, na incongruência que é vetar o acesso de ex-comunistas à Comissão e, logo de seguida, dar de caras com uma nova composição parlamentar onde alguns deputados dos países de leste tenham um passado manchado pelas atrocidades do comunismo. Como pode o PPE ser contrário à presença de ex-comunistas na Comissão e depois ser obrigado a conviver com eles, como colegas da mesma instituição?
A linha de raciocínio que influencia a vontade do PPE não é consistente. Não só por ela atentar contra os valores de tolerância que são professados por estes democratas. Mas também porque não tendo havido julgamentos que apreciassem o envolvimento criminoso de tais personalidades que se sujeitam ao veto do PPE, menos ainda se justifica esta recusa dos democratas-cristãos europeus.
Parece que o PPE quer imitar a lamentável atitude, na altura protagonizada pela Internacional Socialista, a propósito da censura contra o governo austríaco composto pelos democratas-cristãos de Schüssel e pelos neo-nazis de Jörg Haider. Então como agora a minha reacção só pode ser a mesma: de reprovação total destes agentes que se perfilam como guardiães da boa consciência democrática.
Julgando-se no direito de sentenciar quem pode ser incluído no jogo democrático e quem dele deve ser excluído, alimentam uma perigosa marcha de intolerância que, afinal, pouco os distingue destas facções radicais e decerto anti-democráticas que eles pretendem marginalizar. Não é assim que a democracia se diferencia dos totalitarismos que diz combater. Ao dar mostras de tamanha intolerância em relação a facções pouco sensíveis ao jogo democrático, é o próprio regime democrático (e os seus intérpretes) que se enquistam numa contradição insanável – a de actuarem com tanta intolerância como os intolerantes que querem banir do mapa eleitoral e político. É a auto-negação da democracia por quem se anuncia tão preocupado com a sua integridade.
Como pode alguém interferir nos assuntos internos de um país soberano, pondo em causa as decisões de um governo que está legitimado pela força do escrutínio popular? Alguém interioriza o direito de, em nome dos interesses "civilizacionais" que corporizam o regime democrático e o Estado de direito, sancionar a validade de decisões de outros países. Estas decisões são pesadas numa báscula da democraticidade que encerra alguma arbitrariedade. Se assim é, caminhamos para um precipício sem fundo. Algum dia, as eleições realizadas nos países podem ver os seus resultados questionados pelo discricionário voluntarismo desta consciência invisível. A democracia vê a sua essência negada porque certos valores são melindrados pelo resultado de um sufrágio popular.
O problema está, também, na incongruência que é vetar o acesso de ex-comunistas à Comissão e, logo de seguida, dar de caras com uma nova composição parlamentar onde alguns deputados dos países de leste tenham um passado manchado pelas atrocidades do comunismo. Como pode o PPE ser contrário à presença de ex-comunistas na Comissão e depois ser obrigado a conviver com eles, como colegas da mesma instituição?
A linha de raciocínio que influencia a vontade do PPE não é consistente. Não só por ela atentar contra os valores de tolerância que são professados por estes democratas. Mas também porque não tendo havido julgamentos que apreciassem o envolvimento criminoso de tais personalidades que se sujeitam ao veto do PPE, menos ainda se justifica esta recusa dos democratas-cristãos europeus.
5.2.04
Pela legalização das drogas?
Com estridente amplificação, a notícia que centenas de toxicodependentes foram ontem presos no Largo do Intendente, em Lisboa. Com sonora difusão, mais uma imagem da perseguição que o Estado, em nome dos bons costumes e da moralidade instituída, faz ao consumo de estupefacientes. Logo a seguir a RTP recuperou imagens de uma reportagem difundida há meses. A reportagem retratava o momento chocante de ver, estendidos pelo chão, esses autênticos “farrapos humanos” que são os toxicodependentes. Numa embriaguez colectiva, sem pudor, espetando em público a heroína nas suas causticadas veias, apoquentando as almas chocadas que com eles se cruzam.
Confesso que este “triste espectáculo” não me choca. Vi-o pela primeira vez em Amesterdão, há quinze anos. Apenas fiquei admirado por ser a primeira vez que testemunhava em público uma pessoa a injectar heroína. Admito que esta opinião pode ser vista como uma manifestação de insensibilidade. Outros poderão invocar o seu direito à dignidade, para censurar os toxicodependentes que não se preocupam em saber se estão a atentar contra a sensibilidade das pessoas que com eles se cruzam. Outros poderão dizer que não exprimir indignação perante a provocação dos toxicodependentes é alimentar a degradação moral em que a sociedade contemporânea está mergulhada.
Contraponho: mais importante é respeitar a liberdade individual. Mesmo que ela conflitue com a liberdade de outras pessoas se sentirem ofendidas perante o que para elas é um aviltante espectáculo. Num conflito de interesses individuais, prefiro dar vencimento ao que exprime um direito de fazer e sacrificar o interesse individual que exprime objecções àquele direito de fazer, empurrando para uma solução que amputa este direito.
A solução desta “chaga social” passa pela legalização de todas as drogas. Legalizar as drogas permitira não só colocá-las no mercado a um preço mais baixo, como também seria um contributo importante para que as drogas adulteradas deixassem de existir. Drogas adulteradas que são, na actualidade, causa de tantos óbitos por overdose entre os toxicodependentes. Admito que esta solução tem um custo imediato: perante a euforia colectiva que se seguiria à legalização, o consumo iria aumentar (não só o número de pessoas, mas também o consumo por pessoa). O que poderia conduzir a mais mortes. Acredito, porém, que no longo prazo as gerações futuras iriam olhar com maior distância para estas substâncias, contribuindo para um mundo mais “higiénico” para gáudio dos moralistas de serviço sempre prontos a sentenciar sobre os “comportamentos desviantes”.
Uma pergunta fica no ar: porque motivo a sociedade se insurge contra estas drogas (duras ou leves) e deixa passar com impunidade outras drogas que são até motivo de sagração popular (o álcool)? Não estamos perante substâncias que provocam, todas elas, habituação, que desgraçam famílias, que podem mesmo levar à morte? Porque continua a sociedade a ser hipócrita e insiste em ter dois pesos e duas medidas?
Confesso que este “triste espectáculo” não me choca. Vi-o pela primeira vez em Amesterdão, há quinze anos. Apenas fiquei admirado por ser a primeira vez que testemunhava em público uma pessoa a injectar heroína. Admito que esta opinião pode ser vista como uma manifestação de insensibilidade. Outros poderão invocar o seu direito à dignidade, para censurar os toxicodependentes que não se preocupam em saber se estão a atentar contra a sensibilidade das pessoas que com eles se cruzam. Outros poderão dizer que não exprimir indignação perante a provocação dos toxicodependentes é alimentar a degradação moral em que a sociedade contemporânea está mergulhada.
Contraponho: mais importante é respeitar a liberdade individual. Mesmo que ela conflitue com a liberdade de outras pessoas se sentirem ofendidas perante o que para elas é um aviltante espectáculo. Num conflito de interesses individuais, prefiro dar vencimento ao que exprime um direito de fazer e sacrificar o interesse individual que exprime objecções àquele direito de fazer, empurrando para uma solução que amputa este direito.
A solução desta “chaga social” passa pela legalização de todas as drogas. Legalizar as drogas permitira não só colocá-las no mercado a um preço mais baixo, como também seria um contributo importante para que as drogas adulteradas deixassem de existir. Drogas adulteradas que são, na actualidade, causa de tantos óbitos por overdose entre os toxicodependentes. Admito que esta solução tem um custo imediato: perante a euforia colectiva que se seguiria à legalização, o consumo iria aumentar (não só o número de pessoas, mas também o consumo por pessoa). O que poderia conduzir a mais mortes. Acredito, porém, que no longo prazo as gerações futuras iriam olhar com maior distância para estas substâncias, contribuindo para um mundo mais “higiénico” para gáudio dos moralistas de serviço sempre prontos a sentenciar sobre os “comportamentos desviantes”.
Uma pergunta fica no ar: porque motivo a sociedade se insurge contra estas drogas (duras ou leves) e deixa passar com impunidade outras drogas que são até motivo de sagração popular (o álcool)? Não estamos perante substâncias que provocam, todas elas, habituação, que desgraçam famílias, que podem mesmo levar à morte? Porque continua a sociedade a ser hipócrita e insiste em ter dois pesos e duas medidas?
4.2.04
Higiene mental
Quando se é puxado aos limites de um conflito, surge o dilema: embarcar no conflito ou fazer funcionar a diplomacia para o evitar? Há, nesta dúvida, um sentimento de desconforto que atravessa as consequências de qualquer uma das opções. Trata-se de um difícil equilíbrio. A decisão, qualquer que ela seja, traz consigo um sacrifício ligado à opção que é preterida.
Alinhar no conflito pode ser tentador, sobretudo quando se ajuíza que a apatia é sinónimo de vitória do outro. Mais ainda quando o outro fica a pairar com a sua sobranceria, com a nítida vontade de vincar a humilhação que a derrota significa. Mas embarcar no conflito é um processo desgastante. Alimentar o conflito na expectativa de sair vencedor pode trazer o fogo-fátuo da ilusória vitória. Uma vitória que não é recompensada pela corrosão do tempo, pelo mal-estar que se instala, pelos danos colaterais que as pessoas mais queridas são chamadas a suportar. São custos muito elevados para saborear o imaterial gosto de uma vitória que pode nem sequer chegar, quando o conflito se adelgaça no fio do horizonte.
Parece que a melhor opção é contornar os obstáculos do conflito. Geri-lo com perícia, ou mesmo evitá-lo – ainda que esta fuga possa significar a capitulação à partida. O custo é prescindir do orgulho ferido quando escapamos do conflito. A penalização depende de quanto maximizamos o orgulho ferido, de quanto encaramos essa ferida como um golpe que arrasta uma dor insuportável. Uma dor que é sentida de forma diferente por cada pessoa. Mas uma dor, um mal-estar evidente que emerge quando alguém escapa de um conflito. Sobretudo quando esta fuga implica uma sensação de covardia, de alguém que mete o rabo entre as pernas e foge do problema para não ter que tolerar os custos inevitáveis que são uma exigência da defesa da honra afectada.
Há outra alternativa para lidar com o conflito. Passar por cima dele, sem que haja uma fuga covarde que represente rendição. A alternativa será não dar importância a quem nos quer arrostar num conflito. Para evitar a angústia de estar mal com alguém. Para evitar a angústia de estarmos mal connosco mesmos por estarmos engalfinhados com o outro. Sem que isto signifique dar o flanco e assim golpear o orgulho que possa estar ferido.
A incerteza acentua-se mais ainda quando pensamos se faz sentido dar valor a um conflito, ou quando surge a dúvida sobre a existência do conflito. Quantas vezes é a ilusão criada na mente que faz nascer situações conflituosas onde elas não existem? É a necessidade de encontrar alguém que seja o adversário que origina estes conflitos imaginados. É, em suma, a génese bélica do ser humano. Que o faz inventar divergências, rapidamente transformadas em conflitos, por haver o cansaço do bem-estar quando se está de bem com o mundo.
Estranha sensação, em que o paradoxo do bem-estar leva a encontrar uma saída que traz o conflito e substitui o bem-estar pela angústia permanente que é o resultado de estar mal com o mundo. Porque existe esta tentação de encontrar o abismo e partir em busca do lado mais cinzento da vida? Justamente aquela faceta que nos faz pessoas taciturnas e nada, mesmo nada, atraentes para quem nos rodeia.
O conflito é uma banalidade. É a negação da individualidade que habita em cada um de nós. Porque o conflito é uma consequência da sociabilidade forçada a que somos impelidos pelas convenções estabelecidas.
Digo que o conflito aniquila o “eu” que vive dentro de mim, porque traz o outro que de mim diverge e liquida o bem-estar que só eu, dentro de mim, consigo sentir. É uma perda de tempo. Não há orgulho interior que possa vingar a sede de um conflito. Palavras como “vitória” e “derrota” são palavras vãs, insignificantes quando pesadas na mesma balança do bem-estar individual.
Alinhar no conflito pode ser tentador, sobretudo quando se ajuíza que a apatia é sinónimo de vitória do outro. Mais ainda quando o outro fica a pairar com a sua sobranceria, com a nítida vontade de vincar a humilhação que a derrota significa. Mas embarcar no conflito é um processo desgastante. Alimentar o conflito na expectativa de sair vencedor pode trazer o fogo-fátuo da ilusória vitória. Uma vitória que não é recompensada pela corrosão do tempo, pelo mal-estar que se instala, pelos danos colaterais que as pessoas mais queridas são chamadas a suportar. São custos muito elevados para saborear o imaterial gosto de uma vitória que pode nem sequer chegar, quando o conflito se adelgaça no fio do horizonte.
Parece que a melhor opção é contornar os obstáculos do conflito. Geri-lo com perícia, ou mesmo evitá-lo – ainda que esta fuga possa significar a capitulação à partida. O custo é prescindir do orgulho ferido quando escapamos do conflito. A penalização depende de quanto maximizamos o orgulho ferido, de quanto encaramos essa ferida como um golpe que arrasta uma dor insuportável. Uma dor que é sentida de forma diferente por cada pessoa. Mas uma dor, um mal-estar evidente que emerge quando alguém escapa de um conflito. Sobretudo quando esta fuga implica uma sensação de covardia, de alguém que mete o rabo entre as pernas e foge do problema para não ter que tolerar os custos inevitáveis que são uma exigência da defesa da honra afectada.
Há outra alternativa para lidar com o conflito. Passar por cima dele, sem que haja uma fuga covarde que represente rendição. A alternativa será não dar importância a quem nos quer arrostar num conflito. Para evitar a angústia de estar mal com alguém. Para evitar a angústia de estarmos mal connosco mesmos por estarmos engalfinhados com o outro. Sem que isto signifique dar o flanco e assim golpear o orgulho que possa estar ferido.
A incerteza acentua-se mais ainda quando pensamos se faz sentido dar valor a um conflito, ou quando surge a dúvida sobre a existência do conflito. Quantas vezes é a ilusão criada na mente que faz nascer situações conflituosas onde elas não existem? É a necessidade de encontrar alguém que seja o adversário que origina estes conflitos imaginados. É, em suma, a génese bélica do ser humano. Que o faz inventar divergências, rapidamente transformadas em conflitos, por haver o cansaço do bem-estar quando se está de bem com o mundo.
Estranha sensação, em que o paradoxo do bem-estar leva a encontrar uma saída que traz o conflito e substitui o bem-estar pela angústia permanente que é o resultado de estar mal com o mundo. Porque existe esta tentação de encontrar o abismo e partir em busca do lado mais cinzento da vida? Justamente aquela faceta que nos faz pessoas taciturnas e nada, mesmo nada, atraentes para quem nos rodeia.
O conflito é uma banalidade. É a negação da individualidade que habita em cada um de nós. Porque o conflito é uma consequência da sociabilidade forçada a que somos impelidos pelas convenções estabelecidas.
Digo que o conflito aniquila o “eu” que vive dentro de mim, porque traz o outro que de mim diverge e liquida o bem-estar que só eu, dentro de mim, consigo sentir. É uma perda de tempo. Não há orgulho interior que possa vingar a sede de um conflito. Palavras como “vitória” e “derrota” são palavras vãs, insignificantes quando pesadas na mesma balança do bem-estar individual.
Os estereótipos de Fernando Rosas
Ler os artigos de opinião de Rosas é sempre recompensador. Serve para afinar a bússola, com a agulha apontada para os antípodas das ideias deste senhor. Hoje decidiu investir contra a “direita trauliteira”, representada pelo CDS-PP. Não vale a pena olhar para a argumentação. Simplesmente não vale, quanto mais não seja por falta de tempo.
Não posso deixar de comentar uma tirada deliciosa do famoso historiador:
“Há que reconhecer que eles já criaram uma imagem de marca, os "cavaglieri" lusitanos. Muito engomadinhos e pomposos nesse estilo de compromisso entre o vendedor de Alfa Romeos e o estagiário pretensioso de firma chique de advogados, com o seu convencionalismo postiço (…)”.
Já se sabe que esta esquerda adora estereótipos. Aliás faz parte do seu património genético de intolerância. A tentação para os rótulos tem o eficaz efeito de segregar o adversário. Hoje ficámos a saber que esta direita é toda feita de um misto de vendedores de Alfa Romeos, muito engomadinhos, encaixando no perfil dos pretensiosos advogados estagiários. Fica tudo no mesmo saco: mesmo as mulheres e as pessoas mais idosas, sem perfil para trajarem as vestes engomadas nem idade para serem advogados estagiários.
Adoro estes estereótipos! Sobretudo vindos de alguém que vi a pavonear-se, deliciado, em Budapeste, com a sua camisa Pólo Ralph Lauren adicionada à inevitável pochette trazida a tiracolo, qual herança dos saudosos tempos do Maio de 68 (a pochette, não a camisa – que essa é sinal de hábitos mais…burgueses)!
Também não gosto, nem um pouco, “desta direita” que é hoje acintosamente dissecada por Rosas. Mas apetece concluir da seguinte forma: perante tamanha manifestação de intolerância, perante as evidências de que o senhor Rosas não convive bem com a liberdade de expressão, prefiro esta “direita caceteira” do que as cacetadas à liberdade que o senhor Rosas poderia aplicar se lhe fosse dado poder para tal.
Não posso deixar de comentar uma tirada deliciosa do famoso historiador:
“Há que reconhecer que eles já criaram uma imagem de marca, os "cavaglieri" lusitanos. Muito engomadinhos e pomposos nesse estilo de compromisso entre o vendedor de Alfa Romeos e o estagiário pretensioso de firma chique de advogados, com o seu convencionalismo postiço (…)”.
Já se sabe que esta esquerda adora estereótipos. Aliás faz parte do seu património genético de intolerância. A tentação para os rótulos tem o eficaz efeito de segregar o adversário. Hoje ficámos a saber que esta direita é toda feita de um misto de vendedores de Alfa Romeos, muito engomadinhos, encaixando no perfil dos pretensiosos advogados estagiários. Fica tudo no mesmo saco: mesmo as mulheres e as pessoas mais idosas, sem perfil para trajarem as vestes engomadas nem idade para serem advogados estagiários.
Adoro estes estereótipos! Sobretudo vindos de alguém que vi a pavonear-se, deliciado, em Budapeste, com a sua camisa Pólo Ralph Lauren adicionada à inevitável pochette trazida a tiracolo, qual herança dos saudosos tempos do Maio de 68 (a pochette, não a camisa – que essa é sinal de hábitos mais…burgueses)!
Também não gosto, nem um pouco, “desta direita” que é hoje acintosamente dissecada por Rosas. Mas apetece concluir da seguinte forma: perante tamanha manifestação de intolerância, perante as evidências de que o senhor Rosas não convive bem com a liberdade de expressão, prefiro esta “direita caceteira” do que as cacetadas à liberdade que o senhor Rosas poderia aplicar se lhe fosse dado poder para tal.
3.2.04
A “pedagogia” dos desenhos animados
Na habitual espera num consultório médico, partilhava o espaço com sete adultos e uma criancinha. Na televisão passava no canal 2 um programa que não era do agrado da criancinha. Protestou, exigiu da mãe que se mudasse para o canal 16, o canal Panda. A funcionária do consultório começou a correu, um a um, os canais televisivos. Não era o 16, mas sim o 22. Fez-se a vontade à criancinha, para insatisfação de alguns dos adultos presentes que não conseguiram esconder um esgar de enfado pela mudança de canal. É a democracia no seu esplendor. Saciar a vontade da criancinha, impondo o sacrifício à vontade das outras sete pessoas que ali estavam.
O canal Panda oferecia um desenho animando que, acredito, constitui o exemplo típico dos desenhos animados que as nossas crianças consomem. Digo isto porque não tenho por hábito sintonizar canais onde estejam a passar programas infantis. Mas, pelo que é possível ler ocasionalmente na comunicação social, o desenho animando que estava a ser transmitido deve encaixar no protótipo.
Concentrei-me na televisão, para apreciar o desenho animado. Não vou dizer que os desenhos animados que via na infância eram melhores. Os tempos mudam e com eles alteram-se os padrões estéticos que se impõem sobre a audiência infantil. Vi e não gostei. Como não assisti nem ao início nem ao final, não pude confirmar se era um desenho animado japonês. Pela aparência, pelas figuras e a forma como são desenhadas, fiquei com a ideia que era daqueles desenhos animados provenientes do Japão que fazem tanto furor entre as crianças.
O que me deixou atónito foram os monstros que habitavam o desenho animado. Bem sei que as crianças têm que ser educadas, de novas, na distinção entre o bem e o mal. A isso voltarei daqui a pouco. Tenho para mim, no entanto, que é de um gosto duvidoso preencher o imaginário das crianças com monstros de feições horrendas, adicionando uma aura de violência quando estes monstros tentam liquidar os bons da fita.
Pensei: quando era pequeno tinha pesadelos por muito menos. E interroguei-me se as crianças de agora, ao darem de caras com esta nova geração de desenhos animados, conseguem ter sonos tranquilos, sem serem atormentadas por pesadelos que terminam num pranto de lágrimas depois de uma terrífica visão de monstros e monstrozinhos que ficam agarrados ao seu subconsciente.
Também pude constatar que há a preocupação pedagógica de educar as crianças na separação entre o bem e o mal. É inevitável que as criancinhas sejam inculcadas numa mensagem do bem vitorioso, derrotando o hediondo mal que cede sempre perante as virtudes associadas ao bem. Não há melhor maneira de iludir as crianças logo desde a tenra idade. Não há melhor maneira de causar esta hipnose infantil, criando expectativas num futuro risonho. À medida que crescem, as crianças cedo concluem que o mundo não é o conto de fadas narrado pelos desenhos animados.
Pergunto-me se não é este lugar de alienação colectiva que leva, mais tarde, à confusão entre o bem e o mal. Como se “bem” e “mal” fossem conceitos incontestáveis, com fronteiras bem nítidas. Assim se entende que, tantas vezes, o desconforto pelo bem inalcançável leve tanta gente a encaminhar-se pelo “mal estabelecido”. É a derrota da pedagogia dos desenhos animados, que não podem passar do que realmente são – puro entretenimento, um lugar à fantasia, uma porta aberta para mundos imaginados.
O canal Panda oferecia um desenho animando que, acredito, constitui o exemplo típico dos desenhos animados que as nossas crianças consomem. Digo isto porque não tenho por hábito sintonizar canais onde estejam a passar programas infantis. Mas, pelo que é possível ler ocasionalmente na comunicação social, o desenho animando que estava a ser transmitido deve encaixar no protótipo.
Concentrei-me na televisão, para apreciar o desenho animado. Não vou dizer que os desenhos animados que via na infância eram melhores. Os tempos mudam e com eles alteram-se os padrões estéticos que se impõem sobre a audiência infantil. Vi e não gostei. Como não assisti nem ao início nem ao final, não pude confirmar se era um desenho animado japonês. Pela aparência, pelas figuras e a forma como são desenhadas, fiquei com a ideia que era daqueles desenhos animados provenientes do Japão que fazem tanto furor entre as crianças.
O que me deixou atónito foram os monstros que habitavam o desenho animado. Bem sei que as crianças têm que ser educadas, de novas, na distinção entre o bem e o mal. A isso voltarei daqui a pouco. Tenho para mim, no entanto, que é de um gosto duvidoso preencher o imaginário das crianças com monstros de feições horrendas, adicionando uma aura de violência quando estes monstros tentam liquidar os bons da fita.
Pensei: quando era pequeno tinha pesadelos por muito menos. E interroguei-me se as crianças de agora, ao darem de caras com esta nova geração de desenhos animados, conseguem ter sonos tranquilos, sem serem atormentadas por pesadelos que terminam num pranto de lágrimas depois de uma terrífica visão de monstros e monstrozinhos que ficam agarrados ao seu subconsciente.
Também pude constatar que há a preocupação pedagógica de educar as crianças na separação entre o bem e o mal. É inevitável que as criancinhas sejam inculcadas numa mensagem do bem vitorioso, derrotando o hediondo mal que cede sempre perante as virtudes associadas ao bem. Não há melhor maneira de iludir as crianças logo desde a tenra idade. Não há melhor maneira de causar esta hipnose infantil, criando expectativas num futuro risonho. À medida que crescem, as crianças cedo concluem que o mundo não é o conto de fadas narrado pelos desenhos animados.
Pergunto-me se não é este lugar de alienação colectiva que leva, mais tarde, à confusão entre o bem e o mal. Como se “bem” e “mal” fossem conceitos incontestáveis, com fronteiras bem nítidas. Assim se entende que, tantas vezes, o desconforto pelo bem inalcançável leve tanta gente a encaminhar-se pelo “mal estabelecido”. É a derrota da pedagogia dos desenhos animados, que não podem passar do que realmente são – puro entretenimento, um lugar à fantasia, uma porta aberta para mundos imaginados.
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