26.2.04

Quando o crime não compensa

Oito da manhã, numa manhã fria e cinzenta. Entrei na sala onde iria dar um exame. Poucos alunos inscritos, ainda menos os presentes (apenas quatro). Ao meu lado sentou-se um aluno para trocar impressões sobre a sua tese de licenciatura. Não tinham passado nem cinco minutos e logo dei de caras com um dos alunos a tentar fazer batota. Sub-repticiamente, retirou uns papelinhos do bolso do casaco, tentando colocá-los debaixo da folha de rascunho. Adverti-o para deitar fora esses papéis.

Como estava bem disposto, e tudo se passou antes mesmo que ele tivesse começado a escrever na folha de teste, decidi dar-lhe uma segunda oportunidade. Fui magnânimo. Outros, mais rígidos, decerto teriam reprovado a fraude e, logo ali, teriam expulso a aluno. Também sei de outros, mais condescendentes, que tapariam os olhos e não se incomodariam por serem ludibriados pelo aluno. Não caí em nenhum dos extremos. Como disse atrás, optei por lhe dar uma nova oportunidade. Mais até por uma curiosidade que cresceu dentro de mim. Para ver até onde conseguiria ir sem os auxiliares de memória que lhe interceptei. Fiquei na expectativa, para saber quanto tempo demoraria o aluno a permanecer no exame.

Não demorei muito tempo para saciar a curiosidade. Dez minutos depois, esboçada meia dúzia de linhas para uma das perguntas, o aluno caiu em si. Não valia a pena insistir sem os preciosos papéis. Entregou o exame e declarou a desistência. A minha dúvida estava esclarecida. Os auxiliares da sua memória estavam tão bem organizados que, sem eles, o aluno era incapaz de responder a qualquer das questões do exame. (Ou teria ficado perturbado com o meu zelo, de tal forma que as ideias ficaram bloqueadas?)

Quando alguém se comporta com tanta leviandade, o que dizer? Se não arriscasse, o resultado final não seria diferente do que vai obter. No fundo, à maioria dos alunos apenas interessa um de dois resultados: aprovar ou não. A reprovação tem as mesmas consequências, quer ela se traduza em dois valores, em cinco valores, na desistência, ou na anulação do teste. O efeito útil é o mesmo. Sobretudo porque, no caso de anulações devidas a fraudes como esta, a universidade não prevê processos disciplinares.

Não sei até que ponto isto não funciona como um incentivo à arte do “copianço”, já que os alunos têm a percepção de que compensa arriscar. O máximo que lhes pode acontecer é a anulação do teste (com a consequente reprovação) e uma breve humilhação perante os seus colegas. Que até se pode transformar em acto de heroísmo pelos seus pares. Eles olharão para o malvado professor como o estorvo ao sucesso escolar, ainda que conseguido com técnicas fraudulentas. Com a propensão para tecer loas aos “coitadinhos” que abunda na sociedade contemporânea, não custa a imaginar que o infeliz expulso do exame fosse erguido em ombros pela solidariedade compungida dos seus colegas. E que o professor fosse acusado de excessiva rigidez e, por isso, apoucado.

Surpresa? De todo. Não vivemos num país onde a mediocridade progride, volumosa, invadindo o terreno do mérito? Não vinga a ideia de que tudo se consegue, mais tarde ou mais cedo? E que se puder ser alcançado com o menor esforço possível, tanto melhor? É uma doença atroz, que mina o valor da sociedade. Uma doença que se incrusta nas gerações mais novas, habituadas a assistir aos tristes espectáculos de mediania das gerações mais velhas. Acomodam-se, em vez de remarem noutro sentido. Assim domina o vírus da mediocridade, do “mínimo denominador comum”, da letargia, esse vírus que corrompe por dentro e atira o país para um doce abismo.

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