9.2.04

Uma história tocante em Angola

A história passou-se em Angola, numa povoação do interior conhecida como “terra do fim do mundo”. Luísa era a personagem central: uma angolana que tinha andado em bolandas nos últimos trinta anos, quando a Unita a sequestrou e depois sitiou apartando-a da sua família. Foram anos de desespero e angústia para Luísa e os seus familiares. À medida que os anos iam passando e que as notícias de Luísa se perdiam na vã esperança de uma boa nova, alimentavam a sensação de que jamais a veriam com vida.

Mas eis que, por artes de magia, deu-se o reencontro. Ao jeito do famoso programa de televisão que colocava familiares desencontrados no mesmo caminho, a delegação da RTP em Luanda prestou um inestimável serviço público. Tudo foi relatado com o dramatismo que convém, para inflamar ainda mais os corações ávidos de sensações fortes, que jorram com intensidade quando estes reencontros ocorrem. As câmaras da televisão testemunharam a enxurrada de emoções: quando Luísa se encontrou com a irmã que já não via há trinta anos; já em Luanda, quando foi ao encontro dos seus velhos pais. A informação desbravou o terreno da dramatização, servida num prato com fecunda afectividade, salpicada das lágrimas ali vertidas que eram o sal da notícia.

Só não consegui perceber se havia mais alguma mensagem nas entrelinhas. A ideia era enfatizar que este reencontro tardio se proporcionou porque já não há guerra no território angolano. O que só foi possível porque cessaram as atrocidades cometidas pela Unita, após a prestimosa acção militar levada a cabo pelo MPLA. É esta interrogação que ficou a pairar: queria a reportagem mostrar que no conflito angolano havia bons e maus, e que este dualismo se encaixa na distinção entre os vitoriosos e os derrotados?

Desci à terra e desliguei-me da aura de romantismo impregnada no episódio de Luísa. Afinal a história esconde uma mensagem subliminar: a derrota da Unita como condição para a pacificação de um território que viveu tantos anos asfixiado e consumido até às entranhas pelos algozes de um conflito desprezível. Como seria bom relembrar que não houve bons e maus neste conflito, que ambas as partes se mereciam uma à outra (porque ambas eram genuinamente más). Seria bom, em homenagem ao rigor, que a jornalista deixasse o seu testemunho de indignação, metendo no mesmo saco os criminosos de um e do outro lado do conflito, os verdadeiros responsáveis por esta e tantas outras situações de sacrifício de pessoas inocentes.

Como seria também ajuizado levantar a questão: está Portugal isento de responsabilidades por tudo o que se passou nos anos da sangrenta guerra civil angolana? A inteligência dominante logo surge, expedita, amordaçando os que ousam levantar a ponta do véu sobre a (ir)responsabilidade da descolonização que protagonizámos. Politicamente correcto é dar como adquirido que foi “a descolonização possível”. Mais ainda politicamente correcto porque as personagens envolvidas no processo são pessoas que estão acima de qualquer suspeita, de acordo com as convenções estabelecidas. Como se fossem o património genético da democracia legada pela revolução de Abril de 1974. Como se fosse suficiente para passar uma esponja sobre o que dizem e o que fazem, edificando um manto de “inimputabilidade social” que os coloca à margem da crítica.

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