Anda no ar uma acérrima polémica sobre o filme realizado por Mel Gibson, “A paixão de Cristo”, que só hoje estreia. O filme retrata as horas finais da vida de Jesus Cristo. Ao que consta – pelos relatos baseados em informações difundidas por um grupo restrito de pessoas que já visionou o filme – é uma descrição carregada de violência. De acordo com certas críticas que tenho lido, vindas quer de quadrantes afectos ao judaísmo quer de sectores do conservadorismo católico, o filme é brutal. Exagera na representação dos factos que, alegadamente, estão vertidos nos textos bíblicos com veracidade histórica.
A troca de argumentos tem servido para inflamar os que, por tudo e por nada, acusam o mundo de ser anti-semita. Não consigo perceber onde querem chegar estas almas atormentadas, que até da sua própria sombra devem desconfiar (também ela deve ser anti-semita…). Ainda merece saliência a não surpreendente coligação entre judeus militantes e conservadores católicos. É uma coligação que faz sentido. Porque antes de verem os seus destinos separados, judeus e cristãos tiveram um passado em comum, um passado no qual JC foi o referencial que os irmanou. Qualquer atentado à história estabelecida logo serve de pretexto para clamarem contra a heresia que ofende os seus interesses.
É perturbador constatar como estes quadrantes têm o condão de mobilizar energias contra as suas próprias causas, de tanto barulho fazerem quando algo ruma no sentido contrário às águas que eles conduzem ordenadamente. Mobilizando esforços tão audíveis, estes sectores dão um tiro no próprio pé. Claro que esta é apenas uma observação pessoal. Esta é a minha reacção quando deparo com apaixonadas reacções contra qualquer manifestação que ouse beliscar a consistência dos dogmas que se alicerçam em verdades históricas que, parece, são irrefutáveis.
Mas compreendo que estes sectores tenham que reagir desabridamente. De outro modo, não conseguem mobilizar os milhões de crentes que ordeiramente seguem os dogmas. Sem o carpido tecido pela oposição dos sectores religiosos mais conservadores, as “obras hereges” passam incólumes, sem manifestações de desagrado. O mundo poderá então concluir que a mensagem vertida por essas provocações corresponde à verdade. Uma nova verdade que suplanta a verdade estabelecida, escrita nos textos sagrados, impassível de refutação. No silêncio pode vingar uma reinterpretação da história onde se filiam os dogmas religiosos. Um revisionismo fatal para a dogmática que alimenta os credos contemporâneos.
Apesar de compreender a forma acicatada como a coligação judaico-cristã está a reagir, a estrepitosa reacção de desaprovação pode espicaçar muita gente a dar uma espreitadela no filme. Se a intenção dos guardiães da dogmática religiosa é a de chamar a atenção que o filme não merece ser visto, esta é a pior forma de alcançarem o seu objectivo. Os responsáveis pela promoção comercial do filme encontraram nestes obscuros conservadores judaicos e católicos os melhores publicitários para o filme de Mel Gibson!
Uma observação final de estranheza para a dimensão polémica que envolve o filme. Há muita gente que anda a opinar baseando-se na opinião de outros. Este furor opinativo não deriva de uma observação directa do filme, mas sim numa observação indirecta, através dos olhos (e do cérebro) das pessoas que já tiveram acesso ao filme. Não creio que daqui surja luz para uma discussão imparcial e coerente. Porque, à partida, só devemos expressar a opinião sobre aspectos nos quais somos observadores directos.
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