Já aconteceu por duas vezes. Logo pela alvorada, quando as baterias estão no início do carregamento para mais um dia de trabalho, dou de caras com a brigada municipal de captura de cães. Em ambas as vezes, felizmente, os três cães sem dono que andam pelas redondezas conseguem escapar. Confesso o meu incómodo por esta sanha persecutória, na senda do “higienismo” que se teima em impor à sociedade.
Os três cães que andam na rua são alimentados por pessoas que gostam de animais. Construiu-se um afecto mínimo entre estas pessoas e os cães. Os três cães são uma comunidade solidária. Nisto fazem inveja aos humanos que se gabam de serem o expoente máximo da organização social e que, todavia, são o melhor exemplo da incapacidade para viver em sociedade. Observar o comportamento destes cães chega a ser comovedor. Ver como eles se protegem reciprocamente, sempre na alçada da figura tutelar do cão mais velho. Como exibem uma dependência recíproca, exteriorizando a necessidade de companhia para combater a solidão. E nunca, nestes dois anos de convivência com os cães, assisti a uma luta entre eles.
Estas brigadas de caçadores dos cães sem dono que erram pelas ruas da cidade causam-me uma profunda repugnância. Vinga a ideia de que os animais sem dono não têm direito à existência. Preocupa-me muito mais a insegurança que sinto pelo facto de ser mal governando por pessoas com escassa inteligência e que estão nos antípodas da competência. Sinto-me mais afectado pela ausente “higiene mental” de tantos quantos tentam esconder debaixo do tapete a sua incompetência, combatendo a sua incapacidade através da perseguição que dão aos animais.
Não vejo esta ânsia higiénica como um sinal civilizacional. Vejo-a como mais uma manifestação de espezinhamento dos direitos dos animais, em nome da suposta ascendência da espécie humana e das suas prioridades, sempre colocadas num patamar superior às das restantes espécies animais. Duvido que o antropocentrismo reinante seja um sinal de uma civilização moderna e aberta.
As brigadas que dão luta sem quartel aos cães sem dono são uma forma de encontrar emprego para alguns dos encostados deste mundo que de outra forma não estariam a fazer nada nos serviços camarários. Mesmo que tenham uma inteligência abaixo de cão (sem menosprezo para o canídeo), como o atesta este episódio surrealista que hoje se passou comigo. Ao ver que a brigada já estava com as redes de captura no exterior, apressei-me a descer com a minha cadela, só para sondar os acontecimentos. Contra o que é usual, desta vez levei a cadela atrelada. Não fossem os zelosos funcionários públicos implicar com uma cadela que, apesar de ter dono, circulava livre pela rua. Quando me acerquei do bando, a cadela antecipou-se e contornou a carrinha, surpreendendo três dos carrascos. Um deles disparou:
- O que é isto?!
- “Isto” (acentuei com desdém) tem dono – retorqui.
- Pois, mas a trela tem que dar menos espaço ao cão. Ele pode morder uma pessoa se tiver tanta margem de manobra.
Na cabeça oca daquela criatura, existe uma regra que estabelece a distância mínima que os donos de cães devem obedecer quando os passeiam pela rua. Estive para lhe perguntar se existe uma distância padronizada, estilo 25 centímetros, ou se esta regra depende apenas do livre arbítrio deles, armados em pseudo-agentes da autoridade. Mas não quis dar troco a tão reles criatura, até para não estragar ainda mais o dia.
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