Na sequência do texto de ontem, lembrei-me de outro filme que há anos passou no circuito comercial: “A vida é bela”. Se não estou em erro, realizado por um cineasta italiano de que não me recordo o nome. Assim que a memória foi assaltada pelo título deste filme, não pude deixar de me interrogar: afinal a vida é bela, ou é o produto de um milagre? Devemos celebrar a vida, festejar a beleza que ela contém, a felicidade de apenas estarmos vivos? Ou elevá-la a um plano místico, sublinhar a sua faceta misteriosa que, todavia, é também motivo de regozijo?
Questionar se a vida é bela ou se ela é um milagre é ver a questão pelos dois lados da mesma moeda. Dizer-se que a vida é um milagre encerra em si a beleza da vida. Como podemos compreender a beleza da vida pelo misticismo que a envolve, por darmos conta de como ela se renova, dia a dia, em milagres sucessivos. Ontem, a propósito do filme de Kusturica, avancei uma interpretação possível para a ideia de “vida como milagre”: a vida é um equilíbrio instável, cada vida humana é efémera, no sentido de hoje se estar bem vivo sem saber que amanhã a morte pode ter marcado encontro sem aviso prévio. Um equilíbrio instável porque a vida depende muito do que fazemos com ela. Mas depende ainda mais do aleatório, que ultrapassa a nossa vontade.
Ao chegar a este ponto, sou levado a outra interrogação que pode desmentir a ligação entre a “vida é bela” e a “vida é um milagre”. Admitir como a vida é um equilíbrio instável como explicação para o misticismo que a envolve resulta no reconhecimento de que a preservação da vida ultrapassa a vontade de cada indivíduo. Neste sentido, não há nada para festejar ao dizer que a vida é um milagre. O milagre da vida não nos apresenta a beleza da vida, apenas sublinha como ela é tão efémera que nos pode ser roubada à primeira distracção, ao primeiro azar que esteja inscrito no roteiro que nos foi destinado. É o misticismo que agrilhoa o indivíduo a factores exteriores a si. Ele não pode responder por si, nem pode conduzir a sua vida. A direcção é-lhe imposta pelas vicissitudes do destino, pelos caminhos ou descaminhos que lhe são colocados no mapa da vida. Remeter a explicação da vida para um milagre resume o fenómeno a uma dimensão metafísica, transcendental. Ela ultrapassa-nos, e por isso é um milagre. Hoje estamos vivos, sempre pelo milagre que nos marcou encontro com a sorte a que os infelizes que já partiram não puderam assistir.
Não é neste sentido que quero admitir que a vida é bela porque é um milagre – ou que é um milagre porque é bela. Estabelecer esta relação de causa e efeito traz para a superfície a necessidade de agradecermos a uma qualquer entidade divina a realização do milagre. É a negação da natureza, a sagração da divinização que explica pelo misticismo todos os fenómenos da natureza. Não é por aqui que a vida é um milagre, e muito menos que ela encerra a beleza de estar vivo. Nesta ideia vejo a fealdade da vida, as sementes lançadas num terreno duvidoso, a entrega do indivíduo a entidades exteriores que são as generosas doadoras da vida, os anjos da guarda que mantêm a vida ligada ao balão de oxigénio da sobrevivência.
Reiterar a ideia de que a vida é um milagre com o seu sentido místico é arrepiar caminho para os cépticos que desconfiam da generosidade da vida, dos que desdenham dela. É dar trunfos para que se interrogue a todo o tempo a justeza da vida. Quando se atribui ao milagre da vida este significado, há uma espada diabólica que pesa constantemente sobre a nossa cabeça. O sabermos que estamos vivos por mercê de quem fez o milagre, e que com um simples estalido de dedos a vida pode ser furtada, ou passar a ser um inferno em vida. É idealizar um estado de dependência, uma sensação permanente de insegurança que nos faz ser tementes da vida se diluir no nada, num ápice.
Prefiro ver o milagre na vida de outra forma. No esforço que cada um faz para estar vivo, para festejar a beleza que é estar vido e aproveitar o tempo que a vida nos creditou. Um esforço individual, um respeito íntegro pela vida dos demais. Sem tempo para lamentar a desdita que bate à porta daqueles que não puderam prolongar a sua vida por mais tempo, quando ainda tanto tinham para lhe sugar. As lamúrias pela morte alheia são o tempo perdido que nos leva ao encontro da vida como milagre no seu sentido negativista – de entregarmos o destino nos braços de uma entidade divina ou numa realidade transcendental sem rosto.
Trilhar esta avenida da vida como milagre é agendar a dependência, a negação do eu; e pesa a toda a hora o estigma da antítese da vida. Logo, aqui a vida é um milagre mas não é bela. Pinta-se em tons de cinzento chumbo, com a densidade impenetrável de um mistério insondável com uma conotação negativa. A vida é bela quando se compreende o milagre de cada um ser espontaneamente o eu que se encerra dentro de si. O desafio está em saber – ou querer – libertar esse eu que tantas vezes vive reprimido. Para que a vida seja não seja um sacrifício, melhor será esquecer que é um milagre.