Como é salutar ver o povinho espumar toda a sua raiva e sentenciar, para quem o quer ouvir, que é tempo de fazer justiça popular. O povo acha-se preparado para administrar a justiça, como se os juízes fossem simples empecilhos. Juízes que, no fundo, nada percebem e são simples cúmplices da criminalidade que campeia, grotesca, incomodando virgens pudicas ofendidas na sua dignidade. Este povo assenhoreia-se dos cânones da justiça. É ele que impede, vigilante, desvios quando os magistrados se distraem com prazeres mundanos e se alheiam da justiça que lhes justifica o salário. O povo, na sua veste de justiceiro, pronto a fazer justiça instantânea. Não interessa que lhe sugiram que a justiça tem que ser ponderada, tranquila (mas não demorada); que nestas coisas de proferir juízos sobre crimes há que ser sensato, evitar que as emoções que jorram à flor da pele toldem o livre arbítrio. É nestas ocasiões que a “democracia popular” se apresenta em todo o seu esplendor.
Tudo se passou com a brutalidade tão típica da espécie humana. Num acesso de irracionalidade, pai e filho desataram aos tiros a dois polícias da GNR. Foram mortalmente atingidos. Como se entregaram às autoridades, não demorou a deslindar o crime. No dia seguinte, gente desocupada acampou à porta do tribunal de Vila Nova de Foz Côa. O ajuntamento queria fazer justiça pelas próprias mãos. É aqui que a coragem vem à superfície. Se estivessem sozinhos perante os criminosos e quisessem fazer justiça em nome do povo, adivinho-os a fugirem que nem o diabo se escapule da cruz. Em horda, é fácil até ao mais tísico passar por valentão. Não só porque o ajuntamento enfraquece a presa, mas também porque sabem de antemão que as autoridades não permitem que as ameaças disso passem.
O desemprego em Vila Nova de Foz Côa deve ser mais elevado do que no resto do país. É que a multidão não arredou pé enquanto os acusados não deixaram o tribunal, depois de um interrogatório maratona. Um deles ficou em prisão preventiva. O outro, o filho, apesar de constar que é senhor um cadastro bem preenchido, teve sorte diferente: fica em liberdade à espera do julgamento. Esta decisão do juiz detonou a fúria da multidão. A indignação subiu de tom, os impropérios sobre o juiz eram vertidos pelo linguarejar brejeiro e ignorante de quem tirou o dia a julgar que podia substituir o magistrado.
Duas observações intrigantes. À uma, folgo em saber que uma amostra do povo se revelou tão solidária com os agentes da GNR que tiveram o infortúnio de encontrar a morte. Não é costume do povo prestar homenagens às polícias. Não é verdade que a imagem corrente das polícias, sobretudo do paradigma do Chico-esperto que por aí pulula, é a de um empecilho aos expedientes? Eis a incoerência do povinho.
Segunda observação: a ignorância é a campeã entre esta gente enraivecida – ou é a raiva que tolhe o discernimento. Insistindo num raciocínio que não chega aos calcanhares dos quadrúpedes, não têm substância para perceber que ao rapaz libertado não podia acontecer coisa pior. Não seria mais seguro ficar em prisão preventiva, evitando a insegurança motivada pela fúria colectiva que invadiu a localidade? Para quem gostaria de fazer justiça pelas suas mãos, a incerteza que fica a pairar sobre a cabeça do rapaz é solução mais sádica do que a reclusão destinada ao seu pai. Cá está a justiça por linhas tortas que o povo gosta de apregoar!
Nem de propósito, tudo isto no dia em que vieram a público os dados mais recentes sobre o analfabetismo na Europa. Sem surpresa, mais uma vez levamos a palma a todos os demais, num campeonato que ninguém gostaria de ganhar. Temos um milhão de analfabetos – quase 10% da população residente! As manifestações de analfabetismo são tantas e tão repetidas que nem vale a pena recordar o repertório que todos guardamos, por certo, e que dá um bom (mas triste) anedotário. Uma dessas manifestações é a convicção enraizada de que o povo é que sabe de justiça. Os juízes, esses, estão lá no seu pedestal e desconhecem a vida real – a vida dos campos, das fábricas, das tascas, dos bares de alterne, das alcoviteiras que não se cansam de ginasticar a língua, etc.
Associar a palavra “justiça” à palavra “popular” é outra exibição preocupante do analfabetismo que nos acossa. Porque justiça é a negação do “popular”, assim como a intervenção do povo nestes assuntos só pode levar à denegação da justiça. São mutuamente contraditórias. Curioso é que os mesmos que se indignam contra a elevada taxa de analfabetismo (Boaventura Sousa Santos e os seus delfins) venham a montante defender que os juízes devem ter uma “consciência social” mais arreigada, sem o qual não é possível uma justiça equitativa. Curioso e contraditório…
Tudo se passou com a brutalidade tão típica da espécie humana. Num acesso de irracionalidade, pai e filho desataram aos tiros a dois polícias da GNR. Foram mortalmente atingidos. Como se entregaram às autoridades, não demorou a deslindar o crime. No dia seguinte, gente desocupada acampou à porta do tribunal de Vila Nova de Foz Côa. O ajuntamento queria fazer justiça pelas próprias mãos. É aqui que a coragem vem à superfície. Se estivessem sozinhos perante os criminosos e quisessem fazer justiça em nome do povo, adivinho-os a fugirem que nem o diabo se escapule da cruz. Em horda, é fácil até ao mais tísico passar por valentão. Não só porque o ajuntamento enfraquece a presa, mas também porque sabem de antemão que as autoridades não permitem que as ameaças disso passem.
O desemprego em Vila Nova de Foz Côa deve ser mais elevado do que no resto do país. É que a multidão não arredou pé enquanto os acusados não deixaram o tribunal, depois de um interrogatório maratona. Um deles ficou em prisão preventiva. O outro, o filho, apesar de constar que é senhor um cadastro bem preenchido, teve sorte diferente: fica em liberdade à espera do julgamento. Esta decisão do juiz detonou a fúria da multidão. A indignação subiu de tom, os impropérios sobre o juiz eram vertidos pelo linguarejar brejeiro e ignorante de quem tirou o dia a julgar que podia substituir o magistrado.
Duas observações intrigantes. À uma, folgo em saber que uma amostra do povo se revelou tão solidária com os agentes da GNR que tiveram o infortúnio de encontrar a morte. Não é costume do povo prestar homenagens às polícias. Não é verdade que a imagem corrente das polícias, sobretudo do paradigma do Chico-esperto que por aí pulula, é a de um empecilho aos expedientes? Eis a incoerência do povinho.
Segunda observação: a ignorância é a campeã entre esta gente enraivecida – ou é a raiva que tolhe o discernimento. Insistindo num raciocínio que não chega aos calcanhares dos quadrúpedes, não têm substância para perceber que ao rapaz libertado não podia acontecer coisa pior. Não seria mais seguro ficar em prisão preventiva, evitando a insegurança motivada pela fúria colectiva que invadiu a localidade? Para quem gostaria de fazer justiça pelas suas mãos, a incerteza que fica a pairar sobre a cabeça do rapaz é solução mais sádica do que a reclusão destinada ao seu pai. Cá está a justiça por linhas tortas que o povo gosta de apregoar!
Nem de propósito, tudo isto no dia em que vieram a público os dados mais recentes sobre o analfabetismo na Europa. Sem surpresa, mais uma vez levamos a palma a todos os demais, num campeonato que ninguém gostaria de ganhar. Temos um milhão de analfabetos – quase 10% da população residente! As manifestações de analfabetismo são tantas e tão repetidas que nem vale a pena recordar o repertório que todos guardamos, por certo, e que dá um bom (mas triste) anedotário. Uma dessas manifestações é a convicção enraizada de que o povo é que sabe de justiça. Os juízes, esses, estão lá no seu pedestal e desconhecem a vida real – a vida dos campos, das fábricas, das tascas, dos bares de alterne, das alcoviteiras que não se cansam de ginasticar a língua, etc.
Associar a palavra “justiça” à palavra “popular” é outra exibição preocupante do analfabetismo que nos acossa. Porque justiça é a negação do “popular”, assim como a intervenção do povo nestes assuntos só pode levar à denegação da justiça. São mutuamente contraditórias. Curioso é que os mesmos que se indignam contra a elevada taxa de analfabetismo (Boaventura Sousa Santos e os seus delfins) venham a montante defender que os juízes devem ter uma “consciência social” mais arreigada, sem o qual não é possível uma justiça equitativa. Curioso e contraditório…
2 comentários:
Caro Paulo,
Concordo plenamente contigo. O analfabetismo e a justiça são duas realidades que não vivem em comunhão perfeita. Podem existir muitas razões de queixa contra a nossa justiça (morosidade, erros, etc), mas não é desta forma que se consegue melhorar as coisas. O bom senso e a razoabilidade são inimigos dos sentimentos à flor da pele. Mas, existe um pequeno grande aspecto que a meu ver não afloraste: o analfabetismo moderno, isto é, daqueles que tendo apreendido a ler e a escrever, não conseguem hoje compreender aquilo que lêem, ou mesmo escrevem. E isto, creio, é ainda mais grave e preocupante. A nossa realidade portuguesa encontra-se plena deste tipo de situações. Pessoas que não pensam minimamente nas coisas e que dizem muito sem dizerem nada! E ainda são aplaudidas pelos seus pares, pois falam bem.
A este propósito, ainda há pouco tempo vinha a público um conjunto de conclusões acerca do facto dos portugueses lerem pouco. É verdade. Vamos lá fora (a países mais desnvolvidos) e vemos que em qualquer lado possível e imaginário se vê uma pessoa a tirar o seu pequeno livro e a ler em quanto aguarda por qualquer coisa.
Penso que isto não despiciendo para este caso. Ler, e ler bem, é uma importante forma de cultivar o raciocínio e nos obrigar a reflectir sobre tudo e mais alguma coisa.
Ora, na azáfama do dia-a-dia de muitos portugueses, este acto não existe sequer, nem mesmo o de pararem e pensarem uns minutos que seja nalgumas coisas importantes para a sua vida. Como poderão então querer assumir posições racionais em certas ocasiões? Só sendo guiadas principalmente pela intuição e pelos sentimentos, e muito pouco, ou nada, pela razão.
E depois vemos no que dá e no estado em que muitas vezes estamos.
Como diriam os nossos antepassados, pela boca morre o peixe, e, cá entre nós, morrem muitos diariamente.
Um abraço amigo,
Batido
PS - A propósito de assinar com uma alcunha, não penso que haja algo de mal quando todos aqueles a quem me dirigo (e quero dirigir) já me conhecem e sabem quem eu sou. O mal está quando a alcunha serve de subterfúgio para não se dar a conhecer quem está por detrás de posições que são pouco correctas e malignas. Mas, Paulo, se houver qualquer inconveniente, passo a assinar com o meu verdadeiro nome, não há qualquer receio nem temor.
Batido:
Duas breves notas sobre o teu comentário: primeiro, que tens razão quando mencionas o analfabetismo funcional (ou moderno, como lhe chamas) como expressão visível da incultura que por aí anda. Nem sei se será mais grave do que o analfabetismo primário, aquele onde é fácil identificar a dedo um analfabeto: é que se este se reconhece a si mesmo enquanto tal, já os outros acham que são uns cérebros mas não têm noção de como estão mergulhados numa forma diferente de analfabetismo.
Segundo: tens total liberdade para assinares como te convier. Eu sei quem tu és.
Paulo Vila Maior
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