7.9.04

Devem as bibliotecas pagar às editoras?

Há dias recebi um e-mail, daqueles que corporizam o significado moderno do “passa a palavra”, com o seguinte conteúdo:

Graças a uma daquelas mudanças na legislação, influenciadas pelo neoliberalismo e que ninguém percebe bem, a Comissão Europeia quer que as bibliotecas passem a pagar às editoras para emprestarem os seus livros ao público! Consequência: as pessoas passariam a pagar para ler ou consultar livros nas bibliotecas públicas!!! A APBAD (Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas; e Documentalistas) está a fazer uma petição para tentar evitar esta monstruosidade:

http://www.petitiononline.com/PetBAD/petition.html

Assine. Impeça o crime. Não custa nada!


Da minha parte quebrou-se a cadeia de transmissão. Não disseminei o e-mail pelos contactos guardados na minha agenda. Porque não concordo com o conteúdo, nem tão pouco com os termos exagerados da petição patrocinada pela APBAD. Mas antes de explorar o assunto na sua substância, impõem-se alguns comentários sobre a forma.

Primeiro, tinha que surgir o papão do “neoliberalismo”. Para certas franjas enquistadas num revolucionarismo demodé, ainda faz sentido a retórica passadista. Ainda vêm à lembrança as palavras de ordem usadas nas “manifs” que embelezaram a sua juventude feita de actos de rebeldia. Passa o tempo, mudam as circunstâncias, mas permanece intacto o modo de operação. Verdade seja dita, com o advento da globalização nota-se um esforço de adaptação linguística. Os chavões têm que se moldar à invasão impertinente do capitalismo: onde há coisas erradas temos a culpa do selvático neoliberalismo. É o culpado fácil, o culpado conveniente. Mesmo que não saibam ao certo o que é o neoliberalismo, ele é o bode expiatório para a afirmação das suas causas.

Segundo, quem pôs a circular a mensagem não se deu conta da confusão em que se embrenhou. Pois se é afirmado que “a Comissão Europeia quer que as bibliotecas passem a pagar às editoras para emprestarem os seus livros ao público”, logo na frase seguinte entra-se em contradição ao alertar as pessoas que “passariam a pagar para ler ou consultar livros nas bibliotecas públicas”. Afinal em que ficamos? A Comissão quer que as bibliotecas paguem apenas quando os leitores requisitam livros e os levam para o exterior da biblioteca? Ou pela aquisição de todos os livros que fazem parte do espólio de uma biblioteca? Fiquei sem perceber. Desconfio que a resposta está na primeira hipótese. Mas não custa nada adensar a confusão, alimentar o exagero, com uma nota adicional que escapa ao rigor e que serve para mobilizar as opiniões apaixonadas contra esta diabólica medida da Comissão Europeia.

Terceiro, os exageros semânticos. Palavras como “monstruosidade” e “crime” agridem a sensibilidade do destinatário do e-mail. Bem sei que por vezes usamos palavras que se furtam ao seu sentido literal. São utilizações sugestivas, enfatizam o significado da causa defendida na mensagem. Neste caso passa-se do admissível. “Crime”? Será que as pessoas da APBAD se substituíram ao legislador e introduziram à socapa um novo tipo criminal no Código Penal, sem que ninguém tivesse notado? Pode não se concordar com a medida proposta. Daí a considerar-se um crime vai uma distância enorme, só explicável pelo desbragamento verbal dos proponentes da petição.

“Monstruosidade”? Aqui entro na essência da questão. Se for verdade que a medida se impõe só aos livros que os leitores transportam consigo para o exterior, qual é a estranheza desta medida? Não é verdade que frequentadores assíduos de bibliotecas se servem deste procedimento para fotocopiarem livros inteiros, ou partes substanciais deles, assim escapando aos direitos de autor? Mesmo que haja algumas casas de fotocópias que exibem pudor e se recusam a fotocopiar livros inteiros, não é fácil reproduzi-los integralmente se a tarefa for dividida por três ou quatro estabelecimentos que se dediquem ao negócio?

Os amantes do livro e da cultura ficam presos numa contradição insanável. O negócio livreiro atravessa dificuldades. As edições são cada vez mais onerosas. Mas há ainda editoras que persistem na teimosia de prestarem um serviço inestimável à cultura, através das publicações que colocam no mercado e que engrossam as estantes das bibliotecas. Se as bibliotecas continuarem a permitir o empréstimo gratuito, as editoras poderão ver o cerco apertar-se. Quem sabe se a única solução não passará por publicar a uma cadência menor, ou até pelo encerramento das editoras que não conseguem ter viabilidade económica.

É isto que os amantes do livro desejam? Se fossem coerentes, aplaudiam com entusiasmo a medida preconizada pela Comissão Europeia. Dela depende a sobrevivência do sector (e é uma medida de elementar justiça). Dela depende a existência de bibliotecas. Se não se deixassem enlear por retóricas bacocas e preconceitos ideológicos, dariam conta de como resvalam para a incoerência.

Sem comentários: