8.9.04

E se a minha filha fizesse perguntas sobre Beslan?

Ainda não nasceu. Está longe de chegar à idade em que as coisas se tornam inteligíveis. Longe está a etapa das perguntas, em que todos os pequenos assobios em seu redor despertam a curiosidade de quem está a crescer. Mas depois de ver a carnificina hedionda de Beslan, com a morte de tantas e tantas crianças indefesas, dou comigo a pensar que resposta daria às perguntas da minha filha se ela tivesse tomado conhecimento do que se passou. Louvo o tempo da sua gestação. Não foi testemunha de um dos actos mais grotescos que vivi nos anos que já levo.

Ponho-me a imaginar a sua curiosidade. As perguntas soltam-se com uma velocidade frenética. Para minha incomodidade, por não saber como responder – ou por não querer dar as respostas que se encontram com a verdade. “Porque foram tantos meninos mortos?”, “que mal fizeram os meninos àqueles senhores das espingardas?”, “porque estavam de castigo, quase sem roupas?”, “e voltam outra vez à escola?”, “os meninos morreram a sério, ou estão a ter um pesadelo de morte?”

Estas e muitas outras que se possam conceber, com a ingenuidade de quem está, para a idade dos porquês, longe perceber a bestialidade de alguns mais velhos do que ela. As perguntas desprendem-se, fáceis. As respostas são quase tão difíceis quanto perceber as motivações dos carniceiros. Se custa a entender a imolação de inocentes, que dizer quando os alvos desta causa que entra para os anais do absurdo são crianças que nada compreendem do que se passa? Exercício inatingível, o de imaginar o que percorreu o interior daquelas crianças recolhidas sob o sequestro de bestas sem escrúpulos. Muito difícil de imaginar o desespero que as tomou de assalto, sem saberem o que viria a seguir. Talvez até tivesse sido melhor. Na ingenuidade própria daquelas idades, decerto não podiam adivinhar o que lhes estava destinado.

Por princípio, sou avesso à justiça de Talião. Não aceito que pessoas com civilidade e na posse do seu juízo aceitem o “olho por olho, dente por dente”. Mas há limites em tudo. Quando esses limites são ultrapassados, quando entra em acção a brutal dimensão da desumanidade, pergunto-me se não se deve dar lugar à excepção.

O mundo anda louco, definitivamente. Os desvarios crescem de tom. Os actos tresloucados, a violência fácil, a percepção de que somos seres errantes, que podemos tropeçar em brutos sem paixão por si mesmos (quanto mais pelos outros). O valor da vida desce vertiginosamente, resvala pela ladeira da ignomínia. Relatos ensandecidos puxam lustro a premonições de outrora, que adivinhavam o abismo para onde a humanidade parece caminhar. Sem que ninguém queira parar, a loucura infesta a atmosfera. O que me inquieta: onde está a fasquia desta corrida repulsiva rumo a um precipício sem rasto?

Apetece-me ser egoísta e ter consciência de que a filha que aí vem não foi espectadora atenta desta carnificina. Bem sei que a dor é maior, muito maior, e mais prolongada, para os que não tiveram a desdita de sair da escola sem vida. Os traumas hão-de perdurar por todo o sempre. As mortes contam-se às centenas, por entre o desespero de pais e mães que ainda olham com uma esperança quase perdida que um cadáver ali, outro aqui, não seja o dos seus filhos ainda desaparecidos. Este sofrimento é ímpar. Daí o egoísmo quando agradeço que a minha filha não tenha sido testemunha desta encenação macabra.

Que me seja perdoada a franqueza. Mas os laços apertam-se quando a infortúnio se aproxima de quem nos é querido. O distanciamento não autoriza senão exprimir a repugnância por quem orquestrou a dança lúgubre de tiros cruzados que só pararam nas costas de crianças indefesas. É o máximo que consigo alcançar. Sem deixar de interiorizar o sofrimento que anda à solta naquela cidade da Ossétia do Norte. Nem deixar de imaginar a dificuldade de tantos pais que, por esse mundo fora, têm que responder às interrogações incómodas dos filhos que buscam porquês. De porquês que nem os seus pais conseguem encontrar, quanto mais esboçar uma tentativa de explicação que satisfaça a curiosidade das crianças.
Uma lição pode ser retida. A honestidade será brutal para mentes ainda à procura de uma bússola que as oriente. São as crianças que hoje se interrogam no meio da desorientação que amanhã procuram uma alicerce para os seus valores. Eis a lição: que lhes seja dado a compreender que a bestialidade não tem limites. Que as perguntas não fiquem sem resposta, por mais traumáticas que as respostas sejam. É que os filhos que anseiam pelos porquês são o garante de que a deriva demencial rumo ao precipício não avança para além dos limites que não encontram um desfecho.

1 comentário:

Anónimo disse...

Compreendo o teu choque. É o meu também.
E se procuro um sentido racional para aquilo, o meu cérebro dá um nó.
Por isso, talvez como defesa, acredito que não estejamos a ver "o filme" todo. Algures noutro patamar (uns dizem que é junto de Deus, outros que é no nosso estado natural - este aqui é uma passagem, uma experiência) tudo isto terá um sentido. Vou acreditar que sim.
A angustia de tentar entender coisas como a que se passou na Ossétia do Norte torna-nos seres inseguros, instáveis. O seu não-entendimento torna-nos cinzentos, indiferentes...
Porque não quero ficar assim, comodamente agarro-me a esta crença de que "não estou a ver o filme todo". Um dia vou percebê-lo. Fico melhor. É prático.
Ponte Vasco da Gama