2.9.04

Barrancos: o fruto proibido é o mais apetecido

Em anos anteriores, por esta altura andávamos entontecidos pela polémica barranquenha. A vila, fiel aos seus costumes ancestrais, teimava em desafiar a autoridade do Estado e repetia, ano após ano, as touradas que terminavam com a morte do touro na arena. Para deleite de hordas de energúmenos que vibram com o definhar de um animal indefeso, Barrancos insistia em violar a lei que proíbe a morte de touros perante o público. O circo trazia para as luzes da ribalta a vila alentejana perdida num canto às portas de Espanha. Multidões de forasteiros eram arrastadas até Barrancos, levadas pelo suave gosto de se sentirem a desafiar a autoridade do Estado.

Entretanto o governo de Barroso decidiu dar uma no cravo e outra na ferradura. Manteve a lei geral, proibindo o sacrifício de touros à frente dos olhos de multidões excitadas. Mas abriu uma excepção para Barrancos, em nome de uma coisa duvidosa chamada “tradição”. Um regime de excepção que perpetua a desautorização do Estado que se mantinha quando os holofotes estavam apontados para a coragem dos barranquenhos. Agora que o triste espectáculo está legalizado, não é com surpresa que há menos pessoas interessadas em frequentarem as festividades.

Do episódio retiram-se duas ilações. Primeiro, de como o Estado se consegue emaranhar numa teia labiríntica de legislação que se volta contra si mesmo. Há as regras, as excepções são mil e uma, com justificações que por vezes raiam o impensável. Cada excepção que se cria é um precedente que se abre para outras excepções serem arrastadas de seguida. Por vezes criam-se soluções arbitrárias e desiguais: casos iguais são tratados de forma diferente. A injustiça é o travo amargo que afecta o paladar de quem fica excluído das excepções. Chega-se a um ponto em que a regra são as excepções e a excepção é a regra. A pretensa objectividade da lei perde-se nos vestígios da imensidão de excepções.

A cada excepção acumulada fica a sensação de que há uma perda de autoridade. Que, por sua vez, arrasta uma falta de credibilidade. Confesso que este é um panorama que não me preocupa. O que me aflige é a “diarreia legislativa” do Estado, que anseia estender os seus tentáculos a todos os domínios da vida social, como se tudo e mais alguma coisa pudesse ser regulamentado. A intrusão na vida das pessoas é excessiva e prejudica a iniciativa, impede o progresso. O Estado é o primeiro e o maior obstáculo ao progresso das sociedades. Contudo, todos os excessos têm as suas consequências perversas. Sem dar conta, este Estado que nos policia através de leis impenetráveis e enciclopédicas perde a razão de ser, por ser o grande óbice ao normal fluir da sociedade.

A segunda ilação tem mais a ver com o simbolismo das proibições impostas. Assim que se descobriu que as festas de Barrancos eram ilegais, elas trouxeram à vila multidões. Enquanto as festas levaram à queda de ministros (assim aconteceu, felizmente, com Fernando Gomes), mais gente era atraída pelo espectáculo ignóbil de espetar uma espada letal no animal acabado de ser toureado. Assim que se legalizou a excepção barranquenha, os adeptos de Barrancos passaram a desviar a sua atenção para outras paragens. Descobre-se agora que não eram adeptos das festas de Barrancos; muita gente ia até a Barrancos com o gosto de comungar um gesto colectivo de desrespeito por uma lei instituída.

Não vale a pena questionar se a lei faz ou não sentido, nem sequer tecer juízos sobre a “nobreza” do espectáculo. Apenas verificar como muita gente, descontente pelo espectáculo dado pelos governos que não souberam lidar com o episódio, se sentia atraída pelo abismo da ilegalidade. Sabendo, à partida, que não podia ser sancionada por participar nessa ilegalidade colectiva. É a prova de como há quem goste de desafiar a autoridade do Estado, questionar o seu afã regulamentador. Mas também a prova de que estabilizada a situação, passando ela a estar conforme com a legalidade, as pessoas perdem o incentivo para a romaria anual a um local onde eram personagens vivas de uma ilegalidade.

Assim se demonstra como a passividade do Estado é o melhor método para que a sua autoridade e credibilidade não sejam prejudicadas. Quanto menos o Estado intervier, menos se sujeita a ser desrespeitado por quem não concorda com a regulamentação. Sabendo que o ser humano tem uma tendência natural para provar do fruto proibido, o que faz sentido é proibir o menos possível. E ter um Estado mínimo, cada vez mais exíguo, menos paternalista.

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