15.9.04

Esboço de um sindicalista fracassado (em defesa dos interesses dos professores)

Li informação sobre um estudo da OCDE que compara os sistemas de ensino dos países que fazem parte desta organização. Entre os vários tópicos abordados, há um que me é particularmente caro – as remunerações dos professores. Ainda que o estudo pareça centrar-se no ensino primário e secundário, se fosse estendido ao ensino universitário as conclusões não seriam diferentes. Ali se conclui que os professores portugueses estão em oitavo lugar, a contar do fundo da tabela, no que diz respeito a remunerações.

Ao ler este dado fui assaltado por uma súbita revolta que costuma apoderar-se dos activistas sindicais do país. Descontando o importante pormenor de serem criaturas politizadas, em vez de defenderem mesmo os trabalhadores que representam, hoje quase me sinto como esta tribo que se sacia na turbulência social como abutres que depenicam carcaças nauseabundas. Por um dia, vou vestir a pele de um sindicalista em defesa dos interesses dos professores – mau grado o desconforto que a vestimenta me traz...

Não é novidade que os professores são mal pagos. Aqui como no estrangeiro. Porque o estudo da OCDE esconde uma realidade que passa sempre ao lado de analistas e do público: esta é uma comparação internacional dentro do mesmo sector. Seria mais relevante apurar a valorização relativa dos professores, primeiro dentro de cada país e só depois partindo para uma comparação entre países. Por outras palavras, onde estão os salários dos professores por comparação com as demais profissões que constituem a população activa?

Em Portugal os professores têm salários baixos, quando colocados lado a lado com outras profissões. Claro que a comparação não pode incluir distorções tão típicas e banais como as da classe política e dos futebolistas. Há que ter atenção às “profissões normais”, se me é permitido usar a expressão. Sobretudo àquelas profissões onde é necessário passar pelo crivo das universidades, onde a formação ministrada é essencial para o desempenho das funções. Das coisas que mais me intriga é saber que hoje estou a formar um aluno que amanhã entra no mundo do trabalho e começa a ganhar mais do que eu, que já cá ando há mais de dez anos nestas lides.

Um defensor do mercado, como o sou de forma intransigente, poderá estranhar esta confissão que cheira a inveja. Este é um caso onde aceito sem problemas que o mercado está distorcido – ou que o mercado revela ignorância e valoriza erroneamente a qualidade das funções profissionais de cada um. Uma pergunta será elucidativa: como podem as empresas servir-se de mão-de-obra qualificada se não houver, num momento anterior, um esforço formativo que vem dos bancos da escola primária mas que é sobretudo adquirido nos bancos das universidades? No fundo, é o mesmo mercado que desconsidera a função dos professores que libertam, ano após ano, mais especialistas que alimentam a competitividade das empresas que o constituem. Não há a recompensa justa pela mais-valia que os professores conferem à sociedade.

Bem sei que os professores antecedem uma fama pouco salutar. Que são dados à preguiça, que se escondem detrás de malabarismos argumentativos tentando convencer os outros que a escassez de trabalho (medida em horas gastas) é compensada pela qualidade do que produzem. Não ignoro que se cultiva a imagem do professor indolente, pouco profissional, sem brio, responsável pelo nivelamento por baixo que corrói o ensino – e, por arrastamento, co-responsável pela mediocridade que nos coloca mais longe dos que nos precedem. O problema é que os professores sejam julgados pelas ovelhas ranhosas que habitam o sistema, como se todos fossem as maçãs apodrecidas de um cabaz sem salvação.

Seria o momento de convocar a retórica reivindicativa, bem ao jeito de uma peça teatral de Brecht. Para protestar contra a injustiça, e reconhecer que o sucesso de toda uma sociedade se faz a partir da base da pirâmide, das escolas e universidades onde somos formatados para o futuro. Impõe-se premiar quem se esforça por lutar contra a prostração instalada. Chame-se-lhe justiça social (conceito que não me é caro) ou outra coisa qualquer, mas que sejam dados passos firmes para que os professores deixem de pensar que estão nesta vida para empobrecer alegremente. Até porque eles não são os últimos vestígios dos heróis românticos que acreditam que “um amor e uma cabana…”

É nestes momentos que me ponho a congeminar os efeitos diabólicos de um cenário catastrófico, hipotético é certo, mas sempre delicioso de arquitectar: o que teríamos se os professores deixassem de exercer a profissão? Talvez então os professores passassem a ser recompensados pelo mérito que lhes não é reconhecido agora.

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