José Eduardo Agualusa, entrevistado pela revista brasileira Época, disse acerca de José Saramago: “não gosto dele. Saramago cultiva o niilismo. É um pessimista que não acredita na vida e seus livros são contaminados pelo desencanto. É difícil escrever quando se descrê completamente da vida” (via Aviz). Num ponto concordo com o escritor angolano: também não gosto de Saramago. Com uma diferença: Agualusa tece uma análise centrada no plano literário; no meu caso, assumo o preconceito de quase desconhecer a obra literária de Saramago, por não gostar da personalidade do escritor (e as ténues tentativas que fiz para ler Saramago esbarraram na rejeição, ao fim de poucas páginas, por falta de atracção pela escrita e pelo enredo).
Discordo de Agualusa na argumentação utilizada. O niilismo é atacado sem dó nem piedade. É invocada a veia pessimista de Saramago para sugerir uma escrita desencantada que revela uma personalidade que se dá mal com o mundo. Numa palavra, Agualusa informa os leitores que ele cultiva as coisas belas da vida, que o mundo é preenchido por essas coisas e que não há lugar aos profetas da desgraça que desdenham do mundo que os acolheu para a vida.
Não quero fazer o papel de “advogado” de Saramago. A pessoa em si causa-me uma antipatia profunda. Pelo seu passado de inquisidor-mor quando foi director do Diário de Notícias, ao tempo do saudoso PREC. Por ser profundamente intolerante em relação aos que ousam discordar dele, fazendo com que a palavra democracia se azede na sua boca. Por sempre aparecer em público com uma pose de sacrifício, como se estivesse a fazer em enorme frete por aturar a corte que tanto o preza e bajula.
Saramago fica na estante, imóvel, a apanhar o pó que merece cristalizá-lo. Interessa-me indagar a excitação negativa que o niilismo e o pessimismo causam em espíritos abertos e optimistas. O lugar comum é o seguinte: o niilismo – a filosofia do não – não adopta um comportamento construtivo perante o mundo. Limita-se a destruir, muitas vezes de forma impiedosa, sem apresentar alternativas ao que é rejeitado. É uma postura negativa por se limitar a um repetido exercício de desconstrução do que existe. Para muitos que atacam o niilismo, veicula-se a ideia de que anda de braço dado com o pessimismo. São as diferentes faces da mesma moeda. Da mesma forma que o niilismo é arrasado pelas consciências politicamente correctas que aceitam (ou se resignam a aceitar) o mundo em que vivem, também o pessimismo é olhado com desconfiança. Como não contribui para avançar o mundo, o pessimismo é vergastado por quem se lhe opõe.
Não sei se os adversários do niilismo e do pessimismo manifestam esta oposição frenética por simples acomodação ao que têm em seu redor, ou por se cansarem da postura desconstrutiva. Até aceito que, na última hipótese, o cansaço de deparar com sucessivas análises que se limitam a arrasar o mundo instituído leve os optimistas de serviço a causticarem niilistas e pessimistas. Seria aconselhável, contudo, que houvesse alguma preocupação em perceber as origens metodológicas do niilismo. A começar, para compreender que niilismo e pessimismo são coisas diferentes. Quando muito, o pessimismo é a consequência de quem se apresenta ancorado ao niilismo. Mas nem todos os pessimistas se enquistam no niilismo.
Têm razão os optimistas e resignados ao mundo em que vivem quando acusam os niilistas de se limitarem à crítica pela crítica, sem avançarem com propostas alternativas que substituam o que está mal? Na perspectiva dos optimistas, esta obrigação construtiva devia recair sobre quem se insurge contra o actual estado das coisas. Seria um ónus necessário para quem exprime descontentamento. Uma obrigação cívica de procurar novas avenidas que venham mudar os caminhos errados que os niilistas criticam com aspereza.
Equivocam-se à partida: os adversários do niilismo não conseguem compreender a matriz filosófica desta corrente. Um niilista pode-se limitar a criticar sem que isso seja encarado como uma “crítica pela crítica”. O simples facto de despertar as consciências para o que é objecto da crítica é recompensa suficiente para creditar em favor do niilismo. Não se trata de simples desconstrução. Atormentar as almas sossegadas com a quietude do mundo estabelecido é o capital dos niilistas. Quando se pensa que o comportamento negativista arrasa as pretensões dos niilistas, não será, afinal, a desconstrução do fétido que nos envolve a melhor demonstração construtiva oferecida pelos niilistas?
Destruir o que está errado (justificando porque está errado) oferece um enorme capital construtivo. Um economista, talvez sem o saber, ofereceu a melhor demonstração filosófica desta realidade: Joseph Schumpeter e a teoria da destruição criativa (por vezes, do caos se ergue a luz).
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