29.9.04

“A vida é um milagre”, de Emir Kusturica

O filme retrata a vida de uma família sérvia que se deslocou para uma zona montanhosa da Bósnia. A acção passa-se em 1992, iniciando-se em plena véspera da sangrenta guerra que levaria à independência da Bósnia. Luca, um engenheiro ferroviário aficionado pelos comboios, pelas maquetes e por aves, tem uma relação conturbada com a sua mulher, uma ex-cantora de ópera semi-ensandecida. Milos é o filho que acaba de sair da adolescência, um intelectual em potência conhecido pelos amigos como Einstein. É também uma promessa para o futebol, acabando por ser contratado pelo Partizan de Belgrado depois de uma exibição memorável num jogo local. A sua promissora carreira futebolística é amputada precocemente quando foi chamado pelo exército sérvio.

No clima de festa que sempre habita os sérvios (a julgar pelas amostras dos filmes de Kusturica), os pais de Milos organizam uma festa de arromba para comemorar a partida do filho. Só nesse dia hão-de ficar a saber que a convocação de Milos para o exército tem uma finalidade exacta: engrossar as fileiras que se preparavam para o conflito bélico com as milícias muçulmanas bósnias. Perante a desconfiança da mãe, sempre atenta às notícias entre dois momentos de loucura em que a lucidez vinha à superfície, Milos fica a saber que vai ser chamado a pegar em armas e a combater o inimigo – onde se incluem alguns dos seus amigos, de etnia muçulmana.

Só então o seu pai, aluado por estar embrenhado no seu mundo particular, se convence da inevitabilidade. Sente então que o chão lhe escapa debaixo dos pés, tal o baque sofrido. Para piorar as coisas, a sua desvairada mulher decide abandoná-lo no rescaldo da festança, fugindo com um músico húngaro, o artista convidado para o espectáculo musical organizado para a inauguração da linha ferroviária que ia resgatar aquele local montanhoso do isolamento. No fundo, Luca sentia-se aliviado pela partida da mulher que apenas aturava por imposição do filho, ainda preso por laços maternais que se confundiam com um inequívoco complexo de Édipo.

Com a progressão da guerra, Luca continuava absorto. Como se a guerra passasse ao lado da sua vida, ainda que as bombas rebentassem nas imediações da sua casa, fazendo-a estremecer com estrépito. Só acorda para as consequências da guerra quando lhe é dado a conhecer que Milos foi feito preso pelos muçulmanos. Só então sente na pele as vicissitudes da estúpida guerra. Dias mais tarde, os seus amigos sérvios do exército entregam-lhe uma prenda: Sabaha, uma jovem enfermeira muçulmana que tinha sido presa. O objectivo era informar os muçulmanos que tinham em sua posse Sabaha, para a trocar com Milos.

É neste momento que o argumento cresce de intensidade. Da desconfiança inicial começa a germinar uma atracção entre Luca e Sabaha. Que se transforma numa relação intensa, a antítese do ódio que a guerra trouxera a sérvios e muçulmanos. O amor de Luca e Sabaha era a negação das divisões étnicas que tinham semeado o conflito. Quanto mais se adensava a guerra, mais crescia o amor entre os dois. Planeando a fuga para a Austrália, Luca e Sabaha caiem numa emboscada de snipers muçulmanos junto a um rio que separa a Bósnia da Sérvia. Quando a liberdade estava a dois passos, um tiro furtivo alojou uma bala mortal na perna de Sabaha. Perdendo muito sangue, foi transportada com esforço por Luca, entre a neve abundante, até a um hospital onde estavam albergadas tropas sérvias. Por milagre, Sabaha escapa numa intervenção cirúrgica sem condições.

Já com as forças das Nações Unidas no terreno, está tudo preparado para Sabaha ser trocada por Milos. A separação dos amantes perfilava-se no horizonte. Mas Luca não esmorece e consegue contornar a segurança dos capacetes azuis, indo atrás de Sabaha, transportada numa maca depois da intervenção cirúrgica que lhe salvou a vida. Quando atravessa a ponte que separava os dois lados, depara com Milos. Um abraço forte, contentamento reprimido por saber que estava a deixar fugir um amor como nunca vivera.

O regresso a casa é feito com contrariedade. A sua mulher tinha voltado, depois de ter sido enganada pelo húngaro. Entristecido pelo seu destino, Luca planeia o suicídio. Sentia que lhe faltavam razões para continuar a viver, agora que tinha perdido a mulher que amava e que no horizonte se desenhava o inferno que vivia antes, ao lado da louca da sua mulher. Sentindo a aproximação de um comboio, coloca a cabeça em cima do carril. Já de olhos fechados, respiração contida para minorar o sofrimento do golpe surdo que lhe ia roubar a vida, eis que sente o comboio a travar com violência. Para sua surpresa, deteve-se metros antes para não atropelar uma burra – Milica – que fez o papel de narrador sem palavras, de guardião dos sentimentos belos, sempre presente para caucionar a boa consciência desses sentimentos. Por milagre, a burra estacionou na linha de comboio metros antes do local onde Luca tinha preparado a despedida da vida. Tinha-lhe salvo a vida, num golpe de sorte que trouxe a mensagem fundamental do filme: que a vida é uma milagre, um equilíbrio precário, sem nos darmos conta da precariedade que abraça a vida.

Kusturica retrata com mestria como o Homem é coveiro de si mesmo. Como se deixa assenhorear por sentimentos que não hesitam em ceifar a vida do próximo, como se a vida fosse um valor desprezável. Corporizando o equilíbrio instável, precário, que faz da vida um pretexto para celebrar, sempre festejar com os requintes de doce loucura que são a imagem de marca do cineasta. Este filme não é tão alucinante (no bom sentido da palavra) como “Gato preto, gato branco”. Ainda assim o non-sense está presente, em doses mais contidas. Kusturica soube construir uma história que mistura as agruras da guerra, uma história de amor sem exageros lamechas e o surrealismo. Uma história de amor hilariante, que desmerece a guerra e faz saber como somos estúpidos em não atribuir valor à melhor coisa que todos temos – a vida.

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