27.9.04

Politicamente incorrecto (outra vez a voz do povo)

Há males que vêm por bem. Há muito que andava a prometer a mim mesmo que deixava de dar tanta atenção às notícias difundidas pela imprensa. Pelo efeito contra-terapêutico que têm, tanta a desgraça, a vilania, a miopia da comunicação social que enfatiza o que menos merece atenção mas é sobrevalorizado por um povo ávido de dramas ensanguentados. Demitindo-se de uma função pedagógica, esta comunicação social casa-se na perfeição com o povo merdoso que por aqui anda.

Tudo a propósito de mais um execrável crime de que uma criança foi vítima. Ao que parece, a menina terá sido assassinada pela mãe, com a conivência do tio materno que encobriu a cena macabra até se ter arrependido, confessando à polícia. Como disse no início, há males que vêm por bem: depois de na sexta-feira ter sido invadido pelas reportagens que tresandam a voyeurismo, meia dúzia de minutos bastaram para recusar ser parte no espectáculo colectivo de que somos intervenientes passivos enquanto telespectadores que consomem este tipo de informação pestilenta. No fim-de-semana não houve noticiários que entrassem pela minha retina. Para evitar a inoculação das poucas cenas lamentáveis a que assisti naquela meia dúzia de minutos.

Já não bastava o crime hediondo, ainda temos que levar com as suas sequelas. A necessidade de escutar a voz popular, para sentir o pulso da revolta que incendeia os espíritos da população local. Escutar os maiores dislates que vêm de gargantas doídas por tanta ignomínia, mas que exalam um odor fétido feito de uma mistura de emoção à flor da pele e ignorância, a mais pura ignorância. Não sei qual será o sintoma: se a tendência contemporânea de alimentar as audiências, indo ao encontro das detestáveis preferências do espectador padrão; se um sentimento de democracia popular que se traduz na espontânea audição da voz do povo; se uma comunicação social que se abastardou e já não se distingue das ignorantes massas que representam a maioria da população. Só sei que este esgar de violência colectiva, tisnando ignorância por todos os poros, é um sinal que me traz profundas dúvidas sobre outros aspectos mais densos da organização social e política que nos rege.

Este caso do Algarve é o segundo acto, em poucos dias, da relapsa figura de um povo embrenhado na sua estupidez. Mais do que sublinhar outra vez a impossibilidade da justiça popular (porque as duas palavras contradizem-se por natureza), interessa agora dar conta de tão elevada ignorância popular. Os homens peroram sobre o que fazer com o irmão da mãe assassina que tenta colaborar com a polícia para descobrir o corpo da infeliz vítima. Empossados de dotes que fariam de cada um juízes com elevadas qualidades, disparatam a torto e a direito, com a complacência dos jornalistas que querem descer o juízo opinativo à voz mais chã. Mães revoltadas insultam o cúmplice trazendo a tiracolo os seus filhos, na convicção de que este é o melhor tipo de educação que podem oferecer aos seus rebentos ainda imersos na inocência.

Espíritos mais revoltados e condescendentes avisar-me-ão que se trata de emoções trazidas à superfície, toldando a sensatez que deve imperar nestes momentos. Desconfio que este não é o diagnóstico correcto. É mais acertado concluir que se trata de ignorância, da profunda ignorância de um povo que raia os limites do analfabetismo. Pela amostra a que pude assistir, a faixa etária é elucidativa da ignorância vegetativa: pessoas que vêm de um tempo em que um ditador considerava que a melhor maneira de se perpetuar no poder era manter a população mergulhada num terrível obscurantismo.

O problema é este: como conciliar um regime democrático com a persistência de um povo tão inculto? Se a democracia é o produto das escolhas de todos e cada cidadão, se é tão avultada e profunda a ignorância, podemos estar à mercê das escolhas deste povo? Confesso que ao fim da meia dúzia de minutos agredido pela douta sabedoria popular, compreendi os níveis de governação medíocre que temos tido. É este o povo que corporiza a maioria. É este o povo que elege as maiorias. No fundo, temos tido a governação medíocre que o povo ignorante merece.

Uma interrogação adensa-se no meu espírito: é este o povo que merece um direito de escolha através do sufrágio? Pergunta incómoda, admito, pelo teor politicamente incorrecto que ela encerra. É nesta altura que vem à memória a famosa frase de Churchill que já se elevou ao patamar de lugar-comum: a democracia é o pior regime se não contarmos com os demais. Mas que a democracia baseada na escolha popular pode ser enviesada quando o povo é tão ignorante, parece-me incontestável. A incómoda interrogação serve apenas para despertar espíritos, não para encontrar uma solução no imediato. Encontrá-la pode levar tempo infinito. A fórmula quimérica para deslindar esta equação será arte de um visionário que consiga encontrar a quadratura do círculo.

4 comentários:

Anónimo disse...

Bom dia,
Dou-te os meus mais sinceros parabéns pelo excelente artigo.
Conseguiste colocar por escrito de uma forma exemplar quilo que também penso.
Continua


Carter

Anónimo disse...

Não posso dizer que concorde com a tua visão pessimista.
Acho que focaste um aspecto que explica em grande parte o que se passa no nosso país em termos de mentalidade.
As pessoas com mais de 50 anos viveram uma parte importante da sua vida num regime ditatorial, que decidia o que o povo podia pensar e fazer. Apesar da revolução política, as pessoas não conseguiram fazer a revolução mental, e educaram os seus filhos tal como foram educadas. Hoje ainda há muitas pessoas com menos de 50 anos com um pensamento limitado. Felizmente, muitos de nós conseguiram já dar o salto mental que nos permite ter capacidade de análise para além do corriqueiro "voyerismo macabro".
Na minha opinião, daqui a umas duas ou três gerações, a massa crítica que elege governos e decide referendos estará melhor preparada para fazer as suas escolhas racionalmente. Eu sei que nós temos de enfrentar o "hoje" como uma talvez pequena minoria, mas eu prefiro olhar para o nosso país com um sorriso benévolo de quem compreende a evolução e o tempo que ela demora. E vou fazer a minha parte na História usufruindo do meu direito de voto e do meu direito de dar a minha opinião, porque são os inúmeros pequenos actos isolados que se avolumam num grande acto comum. É como uma bola de neve, cada vez irão surgir mais mentes esclarecidas e abertas.
E tu? Qual é a tua contribuição para a história e o futuro dos teus descendentes?

Quanto ao caso da criança desaparecida, acho que os canais televisios estão a tentar fazer notícia do nada, mas isso só vem mostrar que quem decide ainda pertence à massa medíocre, mas não será sempre assim.
Eu acredito que as mentalidades vão mudar e vou tentar contribuir para isso fazendo a minha parte, ainda que não esteja cá para o testemunhar.
CP

PVM disse...

CP:

Com frontalidade: não estou por cá para contribuir para nada. Este mundo é um acaso e sou uma peça pequena demais na engrenagem para ter ilusões de que posso “mudar o mundo”. Essa ingenuidade perdia-a na adolescência. Contento-me em denunciar, sem pretender construir nada. É um cepticismo militante que pode ser desagradável, bem sei. Mas é a corrente que me move num rumo. Não devemos ser espontâneos, não contrariar a nossa natureza?

Paulo Vila Maior

Anónimo disse...

Bom, eu prefiro manter a ingenuidade da juventude a tornar-me num velho do Restelo, que critica sem apresentar soluções ou alternativas e sem ter esperança no futuro.
Eu gosto de pensar que, se cada um fizer a sua parte, juntos mudaremos o mundo. Eu vivo neste mundo e não quero passar o resto da minha vida a queixar-me do que me rodeia sem contribuir para o meu sonho de um mundo melhor.
Tens razão, devemos viver seguindo a nossa natureza, sendo verdadeiros connosco próprios. Eu não consigo viver de outra forma, mas aceito que não partilhes a mesma opinião. Tal como tu, eu só estou a dar a minha, mesmo que seja uma ingenuidade...
No hard feelings,
CP