Coisas surpreendentes, que prosperam a perplexidade porque passam quase incólumes por entre a poeira dos dias. O vereador da esquerda folclórica na câmara de Lisboa recebeu uma tentadora proposta de 200.000 euros para fechar os olhos num licenciamento de obra a favor de quem praticou corrupção activa (Bragaparques). O vereador, Sá Fernandes, denunciou a tramóia. Os jornais fizeram eco da vigarice, mas as ondas de choque foram do tamanho de um fraco abalo telúrico, daqueles que os sentidos não detectam.
É nestas alturas que me inquieta o poder de um polvo tentacular que paralisa tudo o que mexa. Não sei se lhe chame bloco central, o diagnóstico da doença que nos afunda para a segunda divisão das estatísticas, batidos pelos outros parceiros europeus (até por alguns dos países de leste, que estavam longe da nossa posição não há muito tempo). Como seria interessante constituir um grupo de trabalho para apurar o peso da corrupção na riqueza gerada todos os anos – por outras palavras, quanto é que a corrupção subtrai à riqueza gerada. Um grupo de trabalho composto por académicos descomprometidos, nunca mais uma comissão parlamentar que faz de conta que investiga para nada concluir.
A tarefa assemelha-se a encontrar uma mosca num quarto escuro. Mas se há quem se deite a adivinhar quanto pesa a chamada “economia subterrânea” no PIB, os sofisticados instrumentos de medição ao serviço dos economistas permitem avançar com a tarefa que me comprazeria. Talvez a missão estivesse destinada ao fracasso logo à nascença. Sujeita a boicotes de inúmeros interesses instalados a quem não é cómoda a divulgação da fatia consumida pelos actos de corrupção que, se suspeita, são o dia a dia de uma melodramática terrinha.
O que Sá Fernandes teve a coragem de denunciar será uma ténue ponta do icebergue. É de louvar a coragem do vereador (sem que daí passem encómios para o grupelho político que o acolheu como cabeça de lista, para evitar oportunismos espúrios). Dir-se-á: resistiu porque tem um acentuado sentido cívico, uma eticidade que o fez declinar o convite a açambarcar uma quantia tão avultada. Dirão outros que o vereador se deu ao luxo de denunciar a vigarice porque tem uma certa abastança; como não vive em estado de necessidade material, não sucumbiu à tentação de açambarcar a mala recheada de notas. Seja qual for a interpretação, aplaudo a recusa de enfileirar como agente passivo da corrupção e o desassombro de passar para os jornais a tentativa de corrupção. Oxalá todas as tentativas de corrupção tivessem o mesmo destino.
Curiosamente, o rastilho foi aceso e não tardou a ser apagado. Convenientemente apagado. Não foi o terramoto que poderia – e deveria – ter sido. Foi um sismo sem importância, registado para os anais do esquecimento. Haverá investigação doravante, para incriminar quem pisou a linha do ilícito? Haverá alguém a pagar pelo crime denunciado? O futuro se encarregará de dar resposta. Com o pessimismo do costume, aposto que tudo há-de ficar na paz podre da condescendência com aviltantes usos. Há-de vencer o habitual raciocínio: “se os outros corrompem e são corrompidos, porque hei-de ser diferente?”
O silêncio que se fez é daqueles silêncios ensurdecedores que revela as culpas e os rabos-de-palha de muita gente. Se calhar, um daqueles domínios em que pouca gente pode atirar pedras ao ar sem medo que se estilhacem no seu próprio telhado. Como compreender que, aceso o rastilho para levar por diante algo que raramente se prova, o fogo tenha sido abafado? Terá sido pelas forças ocultas que se banqueteiam no lauto manjar dos dinheiros sujos? Nisto da corrupção, as coisas são engendradas por espertos que evitam deixar rasto; nisto da corrupção, quem denuncia acaba por curtir os ossos no banco dos réus, acusado de injúrias e outros crimes adjacentes.
Ao recordar o episódio não consigo resistir a ser tomado pelo moralismo, o moralismo que, como princípio, rejeito. Descanso na minha consciência. Só os outros podem responder perante a sua, quando escorregam para a tentação materialista insuflada pelas propostas indecentes da corrupção. Abro uma excepção na recusa em ser sacerdote da moralidade. Com a corrupção, é o calo mais doloroso que me pisam. E como ele se dói, estas as palavras feitas protesto. Dirão os que apaziguam reacções perante a corrupção: existe em todo o lado, mesmo nos países mais avançados. Pois, mas ela estende os seus tentáculos nos países mais pobres, mais incivilizados – onde a riqueza podia ser maior acaso não fosse desbaratada nos meandros obscuros da corrupção. É este o nosso protótipo? Ou apenas a minha ingenuidade?
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