22.2.06

As setenta virgens de Alá (exercício de blasfémia islâmica)

Tudo se presta à sátira, sem excepção. Para equilibrar as acusações de anti-semitismo do texto de ontem, as munições foram assestadas aos muçulmanos que acreditam na oferenda de setenta virgens se eles sacrificarem a vida num ataque suicida que ceifa a vida de um punhado de hereges.

Dir-se-ia que o preceito do Corão tem muito de marialva. Viesse a regra vertida na bíblia e adivinhavam-se banhos de sangue a toda a hora, tantos os incentivos para homens garbosos, na borbulhagem das hormonas ferventes, sempre ávidos para aumentar o rol das conquistas femininas. Falando-se de virgens, ainda imaculadas na sua castidade, território por desbravar, mais a conquista assume contornos de epopeia. Esta é uma das razões que leva eméritas feministas a deplorar a religião muçulmana. Por vezes surgem notícias de mulheres vestidas de negro que dão a vida pela fé. Confirmando a discriminação que remete o sexo feminino para um obscuro papel secundário, o Corão não promete às sacrificiais fanáticas setenta homens virgens quando franqueiam as portas do paraíso celestial.

Por cá, a regra teria o condão de funcionar como incentivo para um exército de desmiolados machos se oferecer para a chacina das massas. É tudo uma questão de incentivos, explicam Steven Levitt e Stephen Dubner num dos best sellers do momento, o livro “Freakonomics, o Estranho Mundo da Economia – o Lado Escondido de Todas as Coisas”. Orientamos a conduta consoante os incentivos que nos oferecem: caso os incentivos sejam generosos e apelativos, agimos em conformidade; poucos estão dispostos a mexer uma palha se o incentivo não compensar ou se estiver ausente. Por entre os escombros da despersonalização do Homem – com o culpado do costume, o capitalismo – o altruísmo quase foi banido do mapa. Os incentivos que nos movem fazem lembrar a metáfora da cenoura e do burro: o asno move-se quando vê a cenoura andar à sua frente.

Uma análise mais cuidada da alegoria das setenta virgens banqueteadas pelos fanáticos suicidas revela aspectos inquietantes. Primeiro, entre os fundamentalistas que oferecem a sua vida no teatro de terror não há homossexuais. Segundo, afinal o despego de si, a entrega às necessidades da religião, não é tão intensa como se apregoa. Não fosse a tentadora promessa de setenta virgens serem contabilizadas a favor do suicida e o exército de desmiolados que abdicam da própria vida em nome de Alá emagrecia. Os que se desapossam da sua existência fazem-no porque o incentivo é compensador, diria mesmo tentador. Não é de religiosidade pura que se trata; antes, de oportunismo que se esconde detrás de um apego cego às virtudes purificadoras da religião.

Não chega desmascarar o logro das setenta virgens prometidas a quem se enfeitar com quilos de pólvora à cintura e com ele levar alguns judeus para o inferno. Alá compreendeu a linguagem dos economistas: é preciso maquilhar a coisa, dar-lhe o incentivo generoso para organizar as fileiras de mártires em nome de Alá. Outra vez os incentivos, lá como cá: por cá, na entrega à materialização das relações humanas; por lá, sob o biombo da espiritualidade que leva os fanáticos a serem meros peões às ordens dos interesses tácticos dos sacerdotes que pregam a palavra de Alá. Sempre um incentivo, o espelho de como somos todos tão oportunistas, cercados de egoísmo por todos os lados.

Imagino as dificuldades que Alá terá na gestão de stocks das virgens que passam pelas mãos ensanguentadas dos suicidas que chegam ao celestial destino. Por cada suicida, Alá tem que prever a existência de setenta virgens. O problema pode crescer numa escala exponencial, à razão de um para setenta. Dando de barato que as virgens utilizadas não podem ser recicladas – virgindade perdida, virgindade nunca recuperada – Alá tem que se munir de um rebanho numeroso para saciar os apetites sexuais dos mártires que lhe batem à porta, despedaçados pela violência da explosão. A menos que Alá tenha os poderes mágicos para restaurar a virgindade perdida das donzelas oferecidas em banquete, ou consiga iludir os fanáticos que esfregam as mãos de contentamento enquanto esperam pelas virgens que, uma atrás da outra, embolsam.

E depois há um pormenor que me deixa intrigado: detecto uma falta de previsão nos mártires que exultam com a possibilidade de degustar setenta virgens. Acaso lhes passa pela cabeça que, na vida eterna assegurada lá pelo céu, têm apenas setenta oportunidades de praticarem o acto sexual? Contentam-se com pouco, a menos que nas leis celestiais haja lugar à reciclagem das virgens que o deixarem de ser, entregues então à escravidão sexual dos mártires depois de cada um deles esgotar o crédito das setenta virgens.

Sem comentários: