23.2.06

A ternura das “manifs” dos camaradas do PC

Habituado a segui-las em noticiários, que se esmeram por dar voz desmedida a quem não representa mais do que seis ou sete por cento do eleitorado. Tal como acontece nas manifestações desportivas, uma coisa é vê-las retratadas no ecrã da televisão, outra bem diferente é ser testemunha directa. Só quando os olhos vêm ao vivo as manifestações (desportivas, e estas, de sindicatos ou dos camaradas do PC) é que certos pormenores deliciosos ficam na retina. Os pormenores que a voragem das notícias deixa escapar.

Descia a Rua de Camões em direcção à Avenida dos Aliados, no final da tarde de um dia de semana. O trânsito fluía, surpreendentemente. Arrependi-me de ter interiorizado a facilidade com que circulava naquele local, àquela hora. De repente, os faróis vermelhos acesos dos carros à minha frente mostravam que a calmaria tinha findado. Em fila, os carros deslizavam em passo lento. Não era acidente, nem o tráfego alucinante de uma cidade que se quer despedir de mais uma jornada de trabalho. Os faróis vermelhos travavam a marcha dos automóveis e sinalizavam a razão do contratempo: uma marcha, vermelha como os faróis dos travões dos automóveis. Uma “manif” de dedicados militantes do partido comunista, o enésimo protesto.

Manda a verdade, os manifestantes não estavam a ocupar o asfalto da avenida. Ordeiramente no passeio, em fila indiana, segurando numa mão a corda que circundava o edifício da câmara municipal. A outra mão, nuns casos, empunhando cartazes de um vermelho vivo debruado a letras negras, com os slogans que tinham convocado os fieis militantes naquele final de tarde. Protestavam contra um qualquer regulamento municipal. Estava mais entretido a olhar para a fauna do que para a mensagem veiculada pelas tarjas. Noutros casos, a mão livre dos militantes mostrava pertença: o punho bem fechado, ao alto, gestos ondulantes de trás para a frente, o sinal identitário dos camaradas que choram saudades dos tempos de glória da Moscovo soviética.

A lentidão da marcha quase dava para contar os manifestantes alinhados no cerco à sede do município. A preguiça do fim da tarde desaconselhou a contagem. Preferi passar os olhos, nem que fosse de relance, pelas pessoas ali arregimentadas no protesto. Os comunistas são ímpares na encenação das “manifs”, com uma capacidade de mobilização que causa inveja aos partidos burgueses à direita, mesmo que eles captem mais votos. Naquele dia, um detalhe despertou a minha atenção: a média etária dos manifestantes.

Rua abaixo, entoando as palavras de ordem que a música seleccionada no carro tornava ininteligíveis, reparei nas caras envelhecidas e carcomidas pelas rugas dos camaradas que ora agitavam o punho com brio, ora empunhavam as faixas com os dizeres da ordem. Cabelos grisalhos nas senhoras, penteados que faziam lembrar as revistas de propaganda soviética dos anos setenta. Muitas carecas altivas nos varões, algumas escondidas sob boinas que ganharam fama entre a facção republicana na guerra civil espanhola. Algumas pochettes de bolso com saudades da contestação do Maio de 68. Diria, um laboratório vivo para a gerontologia.

Nada contra a terceira idade. Acaso inveja, por os saber chegados a uma idade avançada sem a certeza que terei o mesmo privilégio. Louvo a predisposição física e mental para saírem do afago do lar, entregando corpos fragilizados a um fim de tarde frio, engrossando a mole humana que dá sentido a uma causa em que continuam a acreditar. O que despertou a minha atenção foi a amostra etária: espelho de um partido que envelhece sem se renovar. Nem um jovem, ou menos jovem mas não idoso, desfilava à volta do edifício da câmara municipal. Não será falta de mobilização, logo num partido como o PC, mestre na arte de arregimentar os fiéis. Apenas o sintoma do sangue fresco que rareia por aquelas bandas.

Regozijo com a prospectiva: saber que dentro de alguns anos perderão força, quando o envelhecimento das bases for dando lugar ao vazio das cadeiras, a ruas mais despidas de manifestantes quando as “manifs” ruidosas passarem a ser mais tranquilas.

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