Meio da tarde de um dia frio e plúmbeo. No gabinete, atafulhado em papeis e minudências. A escuridão das nuvens acrescenta um travo tristonho à tarde sombria. Há uma tranquilidade exasperante. Na estrada habitualmente pejada de trânsito apenas um carro aqui e ali. Quase parecia uma madrugada desabitada de almas. A luz do dia desmentia-o. E nem o vento se notava, sequer uma ténue brisa, na quietude angustiante das folhas que já começavam a despontar nos galhos. Também os pássaros se tinham ausentado. De repente, um frémito de solidão. Pressentia algo de inusitado, desconfortável, inquietante.
Maquinalmente, invadi a Internet. Como tantas vezes, em pausas do trabalho para uma actualização da marcha do mundo. Só tranquilidade. Notícias corriqueiras, o marasmo habitual de factos feitos notícias na falta de coisa relevante para informar. Lá fora, a venenosa tranquilidade era a ilustração do macilento dia. E, no entanto, sentia que a calmaria era um falso sinal de sossego.
Subitamente, o alvoroço. Nos corredores, correrias desenfreadas de um lado para o outro. Na rua, atropelos de pessoas e de automóveis, todos em fuga desabrida. Até o vento estava de regresso, uma brisa gélida enterrada até à medula, trazendo arrepios que percorriam o corpo em toda a sua extensão. Ainda a lucidez de voltar à Internet, para perceber a razão do caos. Notícias desencontradas de um ataque nuclear. Londres, Berlim, Roma, Madrid, Paris, Munique, Viena, Varsóvia já tinham sido atingidos. Entre a confusão semeada, informações contraditórias, a angústia do silêncio do lado de lá, dos sítios onde as bombas tinham detonado. A incerteza aumentava: constava que ainda havia bombas por rebentar. Só não se sabia onde.
Enquanto o caos continuava a tomar conta das ruas, permanecia à frente do computador, procurando decifrar os acontecimentos. Tentei fazer telefonemas. Em vão: a rede estava sobrecarregada. Procurava saber junto de familiares algo mais, eles que tinham acesso à televisão. Queria saber se estavam em segurança, a minha maior preocupação. Pela impossibilidade do contacto, a angústia crescia. Soube-se, entretanto, a origem dos ataques: o Irão. E das retaliações prontas dos Estados Unidos, que não demoraram a enviar uma mão cheia de mísseis para o Irão. O cenário dantesco representado em filmes catastróficos estava montado. Do gabinete ao lado alguém me veio chamar. Que era imperioso que saíssemos já, para nos refugiarmos num abrigo (como se abrigos houvesse – apenas mais influências cinéfilas que se alojaram no subconsciente).
Fui, sem saber por onde, apenas guiado pela multidão aturdida, parar ao abrigo. Depois de muitas escadas descidas rumo à escuridão de um refúgio enterrado incontáveis metros abaixo do solo. Estranhamente, a desordem tinha dado lugar à organização. As pessoas tinham-se arrumado, ordeiramente, nos vários compartimentos. A luz era baça, o ar carregado. Uma sensação de claustrofobia tomava conta de mim. Claustrofobia pela ausência de notícias sobre as pessoas que me são queridas. Pela incerteza de as voltar a ver. Ao meu lado, preces entrecortavam-se com os pensamentos que vogavam, confluindo sempre na interrogação que me angustiava: onde estão, como estão, as pessoas que quero bem? Nem assim consegui partilhar as orações que se contagiavam de pessoa em pessoa. Ao início apenas um rumor que se espalhava pela sala, as súplicas ficaram audíveis. Mergulhei no silêncio à medida que a ansiedade me invadia com mais força. Perdi a noção do tempo. Foi então que despertei. Não tinha passado de um pesadelo.
No torpor inicial da alvorada, ainda com a sensação desagradável de ter vivido o pesadelo que parecia tão real, perguntei-me que mistérios tem o subconsciente para nos conduzir por sonhos tão insondáveis. Lembro-me que escrevi, há meses, contra a campanha da moral internacional que quer vedar o acesso do Irão a armas nucleares. Discordei que as armas nucleares são um perigo se estiverem nas mãos de loucos ou Estados párias, rótulo que serve, no tempo que vivemos, ao Irão. Defendi que as armas nucleares são perigosas pela sua simples existência, não pelo facto de estarem nas mãos erradas. Meses mais tarde, um pesadelo que desmente ideias que coloquei em letra de forma.
Terão sido as imagens de violência dos extremistas islâmicos, as promessas de interminável guerra santa pela blasfémia dos cartoons dinamarqueses, e os comícios do presidente iraniano em que perpassa a imagem de uma ensandecida personagem que se prepara para semear o terror?
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