2.2.06

Um quadro cor-de-rosa

Horácio acordou. Noite tão longa, já tinha a aurora raiado quando se abraçou aos lençóis pintados a escarlate. Ao lado, na mesinha de cabeceira onde jaz a bíblia em dinamarquês, olhou para o relógio e discerniu uns números avermelhados, que lhe queriam dizer qualquer coisa que não chegou a perceber bem o que seria. Ensonado, tirou o sapato direito e ficou a olhar para o esquerdo. Este entrou nos lençóis, para fazer inveja ao que acabara de sair do outro pé. A roupa fez-lhe companhia na cama, roupa ainda com o cheiro nauseabundo de um camarada de boémia que vomitou em cheio em cima do Horácio.

Acordou, por entre as malditas buzinadelas de condutores de carros cheios de pressa para viver uma vida vertiginosa. Aprendessem a lição de viver com a languidez dos apóstolos dos projectos adiados. Sem preocupações, nem dores de cabeça (para além das que são curtidas em ressacas monumentais). Uma viola canta a melodia que embala a vida dos desinquietados. Só no dia seguinte, ainda etílicos vapores ensombram o juízo, acha as horas, o casaco que só tem remédio na lavandaria, o telemóvel com a capa do Benfica, os óculos de sol cujo último paradeiro conhecido teria sido nos olhos de um ganso quase a ser sacrificado para gáudio da trupe.

O Horácio gosta mais do Inverno. Dura menos o sol, essa irritação que prova que deus ou não existe ou anda equivocado. Detesta o sol, pela luz intensa que fere as delicadas pupilas onde transbordam vasos que nadam em derrames sanguíneos. O dia é uma inutilidade. Gente a mais na rua, apressada para as tarefas desconhecidas que se perdem nos caminhos anónimos onde essas pessoas urgentes se perdem de vista. A noite tem a magia do negro, mistério que resguarda os segredos que o dia descodifica. Menos transeuntes, menos as caras semi-cerradas que se cruzam como se mais ninguém existisse. Pela noite, só as almas merecedoras. Os consortes da leveza de espírito.

O que a gente comum não sabe é sugar o tutano que a vida contém. Fica-se pela superfície, numa amostra radiante do travo amargo da felicidade efémera. Penam longamente para a exultação de algo, ou com alguém, apenas por uns breves instantes. Passam por aqui como os eléctricos que devoram a linha num quase atropelo aos automóveis que se acercam.

Ao sair de casa, cruza-se com o cão da vizinha, aquele cão estranho que tem unhas de papagaio nas patas traseiras. O cão desconfia sempre do Horácio. Só do Horácio. As vizinhas alcoviteiras, que fazem parelha com a dona do insuportável canídeo, afagam-lhe os pompons e o bicho fica logo extasiado, estendido de quatro no chão, a mostrar a barriga que aloja os ácaros da alcatifa. O Horácio, que acredita em ciências ocultas e assina por baixo a teoria da reincarnação, está convencido que o malvado cão foi um pérfido nazi numa vida anterior. Ou mais um rosto anónimo da horda que vegeta, sem interrupções, numa labuta feita vidinha maquinal.

São só dois passos até ao café do senhor Maurício. Um quarto de Vigor, para desintoxicar. No balcão, o jornal do dia noticia mais um crime terrífico, com pormenores sádicos. Desvia o olhar para a televisão, encimada pela figura da Nossa Senhora de Fátima que tutela a protecção do estabelecimento. A emissão é feita do Cadaval, do primeiro congresso anual dos anões. Horácio toma conhecimento que os anões querem pagar impostos à medida do seu tamanho. Exigem desconto nos impostos, para serem compensados da iníqua natureza que os dispôs como são. Tudo lhe parece ainda uma nebulosa bola sem contornos, um quadro surreal onde as cores se sobrepõem. As coisas ainda não fazem sentido.

Ao seu lado o famoso Vitorino, acabado de chegar – Bitorino, em homenagem à prolação dominante no lugar. Outrora pequeno traficante de drogas leves, o tempo trouxe-lhe o sucesso do empreendimento. Horácio acha-o um parasita, um oportunista que leva inocentes adolescentes no engodo. Quando dão conta, estão emaranhados nas malhas das substâncias mercadas pelo Bitorino, eles e elas, o peixe pequeno que se consegue desensarilhar das apertadas malhas. Os culpados são os Bitorinos que por aí pululam, mais os grandes tubarões que fazem fortuna com o negócio. O primeiro lampejo de sobriedade (na maneira de ver as coisas pela lente do Horácio), já a luz solar rareia e os lampiões se anunciam para breve.

Hora de cambalear. Encostar a indisposição num banco do jardim. Pode ser que o ar fresco que se pôs seja terapêutico. Toda uma noite pela frente exige outra disposição. Ou haverá lugar a uma daquelas maratonas de sono para pôr em dia o descanso de que perdeu rasto. As coisas compõem-se, entremeadas com um cochilo interrompido pela cabeça que toscanejou para a frente, despertando-o. O silvo dos pardais tardios é o mote para a aventura que se segue. O desafio de fazer que todos os dias sejam diferentes, intenso apelo à fértil imaginação dos reis da felicidade. Anoitece, mas o quadro que desfila perante os olhos do Horácio é, agora, cor-de-rosa.

1 comentário:

Anónimo disse...

QUEM CONTA UM CONTO, LÊ OUTRO E PRONTO.

Era uma vez…
Um cão de raça estranha. Mistura de psitacídeo e de gato das botas, tocava piano e falava francês. Dono de uma barriga do tamanho do mundo, adorava que lha catassem, em busca das pulgas que depois mordia deliciado. Tinha uma dona, que por sua vez tinha umas vizinhas, muito, muito alcoviteiras. Reuniam-se em casa da primeira, tomavam um chá – verde, que faz melhor à saúde, apesar do sabor algo esquisito dado pela pastilha rennie que lhe juntavam, qual adoçante, em jeito de paliativo para as confabulações aziagas –, assistiam ao mundo pela novela e lá costuravam um dedito de conversa.
Andava estranho, o mundo. E a novela acentuava aquele mundo, “visto por um quadrado”, simultaneamente o instrumento e o próprio ser; quadrado, portanto.
Mas esta admirável realidade deixava a imaginação voar e ousar o que aquela curiosa, mas não incomum, agremiação não vivia.
E ainda assim, algo de sobrenatural, de transcendente, sustentava aquela estranha união. Seria o facto de todas serem porteiras em prédios de senhores doutores – o que as elevava à sapiência de origem osmótica – ou o facto de lerem – em tom prazenteiro e com a cabeça inclinada, embevecidas – passagens de O Alquimista ou de Nas Margens do Rio Pedra Sentei e Chorei?
Pouco importava, desde que isso as aproximasse, e em verborreias onanistas se sentissem donas do quadrado. Sim, porque quem é senhorio tem direito, e dever, de falar do que é seu, mesmo sem que ninguém o escute. E lá vinha, a espaços, a conversa das doenças: “Porque o meu reumatismo dói mais que a tua gota!”.
Assim passavam os seus dias, amalgamando as mais sábias crenças sobre o quadrado, que já não era reflexo, mas realidade, de que a novela passava por ser o retrato fiel.
E sorviam um gole de chá verde, com pastilha, para prolongar o serão.
Era uma vez um cão de raça estranha…

Parque das Nações