3.2.06

A saga do Horácio

Uma noite como tantas outras. O roteiro, nunca preparado. Ao acaso, errando pelos becos nocturnos, atrás da miragem de um véu de sombras semeadas noite fora. Enganara o estômago, à boleia de um pândego endinheirado. O longo desfile etílico começara. A mente desperta para uma estranha lucidez, que se alimenta da mistura de bebidas alcoólicas.

Por entre ruelas esconsas, sobem e descem as colinas da cidade perseguindo a agitação. Dir-se-ia que ele e os amigos são os fautores da agitação. Mobilizam as massas sequiosas de uma vida fremente, enquanto os anónimos da vida corriqueira estão plantados no seu sono. Perturbam apenas os que se indignam com a boémia nocturna que levam. Um modo de vida, como outro qualquer, reclamando o mesmo respeito que todos os outros modos de vida merecem.

Naquela noite havia um fervilhar especial. Sem explicação. Não era fim-de-semana, quando as laboriosas almas saltam da toca e vêm saborear o ar nocturno. Não havia eventos que trouxessem tanto frenesim às ruas. Mas que interessava o porquê de tão intensa movimentação? Tarefa para os teóricos do mundo, entretidos com elucubrações intermináveis sem sumarenta matéria. Aos cavaleiros da folia, apenas o ofício de empunhar a diversão, testemunhas e actores da boémia inflamada.

Horácio nunca tinha escutado tantas línguas estrangeiras como naquela noite. Interrogava-se se a bebida, já tragada em dose generosa, não lhe trouxera miragens auditivas. Miragens visuais, tinha-as como um hábito. A vista a dobrar era imagem de marca de noites sucessivas, quando o whisky marado, os shots diversos, ou a cerveja (na escassez de dinheiro) entravam em doses abundantes e tingiam a circulação sanguínea com o álcool reconfortante. Era a primeira vez que passava pela experiência de miragens auditivas, com uma torre de babel de línguas estrangeiras a entrar pelos tímpanos.

Não era pródigo em línguas estrangeiras. O eterno cábula sempre se gabou de empregar o menor esforço para atingir as metas do sucesso estudantil. As línguas não foram excepção. Foi metendo conversa com alguns estrangeiros que aprendiam a noite da cidade. Sabia que tinha que usar a língua franca do momento, o inglês. Aos poucos foi desenferrujando o macarrónico inglês, aqui e ali entrecortado por anglicismos que ele traduzia à letra do português (“I convite you for a beer”). A condição etílica já toldava o discernimento. Porém, a comunicação ia-se fazendo, de vez em quando com desistências dos visitantes que o deixavam entregue à solidão. Apenas por breves momentos. Naquela noite Horácio sentia a veia internacional a latejar.

Ancorou em companhia duradoura. Não quis saber nacionalidades, nem se lembrava dos nomes dos comparsas. Era irrelevante. Um militante empenhado da boémia nocturna tem como lema a efemeridade dos laços. Conhecem-se pessoas que o excesso de álcool remete para um canto das remotas lembranças, ou para o total obscurantismo quando a bebedeira beijou o coma alcoólico. No dia seguinte, ainda na cama, num primeiro esforço para rebobinar os acontecimentos, Horácio nem sequer se recordava quantos eram os companheiros de noite ocasionais. Apenas traços mais fortes – a verruga mesmo abaixo do lábio num deles, outro ruivo e sardento (devia ser inglês), um terceiro cravejado de piercings, outro que tanto bebia uma cerveja como a vomitava de seguida.

Noite de caixão à cova. Com o corpo ainda mergulhado no torpor etílico, a cabeça já a rebentar de dores tão familiares, ia-se demorando na letargia de quem irrompe do sono. Na tentativa de reconstituir a noite, começou pelo fim. De nada se lembrava. Nem sequer de como tinha ido parar à cama, àquela cama que só uns instantes depois de despertar percebeu ser a sua. No cabide, do outro lado do quarto, um casaco pendurado que não era seu. Teria dado guarida a um dos companheiros de estroinice? Saltou da cama, a tropeçar corredor fora, olhou para a sala, espreitou na cozinha; não havia sinais de ninguém.

Regressou ao quarto. Estacou defronte do bengaleiro onde jazia um casaco castanho, todo coçado. Nas costas um dístico em garrafais letras douradas: “Bergen, Norge”. Por entre a anomia dos sentidos teria acaso trocado o querido casaco de couro por aquele andrajo? A inquietação despertou-o do vegetativo acordar. Acendeu a luz para afastar a penumbra que enchia o quarto. De súbito sentiu a pulsação acelerada do coração, a aflição que o acossava. Na desarrumação habitual do quarto encontrou o casaco meio escondido debaixo da cama. Sossegava. Voltou ao casaco usado. Vasculhou nos bolsos em busca de sinal da identificação do dono. Tudo o que encontrou foi um bilhete:

What a terrific night, amazing excitement. You are the best! When you come to Norway, call me. Knud.

O desafio não o motivou. Não se imaginava imerso no frio glaciar, acompanhado de noruegueses que bebem ao fim-de-semana ate caírem para o lado. Não se dá com inexperientes, não gosta de climas frios, nem simpatiza com pessoas frias. O ego, contudo, refulgia de brio. Sentira-se cicerone da sua cidade, dos meandros escondidos da agitação nocturna. Estava seguro de que tinha desempenhado o seu papel com excelência. A nota deixada no casaco era a recordação de uma noite formidável. Já não se sentia apenas um herói local. A sua marca herdara um carimbo internacional. Se, porventura, um dos raros acessos da consciência reprimida o desafiasse a mudar de vida, esta era a prova que faltava para continuar na senda do caminho percorrido. Por tanto haver ainda por percorrer.

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