20.2.06

Heroicidade

Um filme: a tripulação do submarino está em alerta vermelho. Uma fuga radioactiva ameaça sepultar o submarino no fundo do mar. Um compasso de espera traz as boas notícias. Os motores recuperaram energia, já vai ser possível emergir o submarino. Um sentimento de alívio percorre os marinheiros. O comandante reúne a tripulação para agradecer o esforço colectivo. Diz que se sente orgulhoso porque todos eles foram heróis, heróis em nome da pátria.

(A linguística tem segredos curiosos. “Motherland” é a palavra inglesa para pátria. Eis como em dois idiomas a mesma palavra muda de género: em inglês, referência ao feminino, é a terra mãe que dá guarida às lealdades nacionalistas. Em português prevalece o espírito masculino, pois pátria deixa a descoberto a filiação paternal da nacionalidade. Seria interessante perceber as razões que explicam a diferença entre os dois idiomas.)

O comandante dedicou uma palavra especial ao marinheiro que arriscou a vida, entrando no coração do reactor nuclear para tentar reparar a avaria. O infeliz jovem, definhado pelas radiações insuportáveis, a poucas horas de se despedir da vida, era o herói maior de todos eles. Empenhara a vida para salvar os companheiros e o submarino, para não expor a pátria soviética ao enxovalho de uma missão fracassada.

O filme retratava uma época diferente da que vivemos. Em plena guerra-fria, as tensões entre soviéticos e norte-americanos estavam ao rubro. Terreno ideal para as pulsões nacionalistas, para uma educação centrada no colectivo, no necessário desprendimento do indivíduo. Cada pessoa apenas um peão dispensável no tabuleiro de xadrez manipulado pelos mais altos servidores de ambas as causas. Carne para canhão, costuma-se dizer. As pessoas acreditavam no desígnio colectivo. Entregavam-se de peito aberto ao que fosse indispensável em nome da pátria, nem que o indispensável acabasse por culminar na morte. Uma morte honrosa, a mais digna forma de morrer: em nome da pátria, que decerto teceria louvores na hora de homenagear os heróis nacionais.

Os tempos mudaram. Acabou a guerra-fria, a paz pelo medo da guerra, a ameaça constante de um conflito nuclear. Outros receios se instalaram, perpetuando a desindividualização do ser. Alguns profetas da desgraça acusam a pessoa de ser mais individualista, desligada de causas que são o cimento solidário de uma colectividade; porém, continuam a vogar sentimentos de entrega a causas que exigem um desprendimento do indivíduo, uma entrega aos ideais de uma causa que irmana a colectividade. Há novas formas de heroicidade. A heroicidade suicida dos kamikazes que matam em nome do fundamentalismo islâmico, como a heroicidade dos militares de vários países que morrem longe de casa, em nome dos valores da sociedade ocidental.

Heroísmos destes são coisa estulta. Uma forma diferente de religiosidade. Uma crença inabalável na superioridade da pátria, ou da religião, merecedoras de tudo o que seja exigido em seu nome. Até vidas humanas, entregues de peito aberto perante as balas que perfurariam a integridade da pátria. Momentos de bravura que ceifam vidas, honrarias prestadas que se esgotam no instante da homenagem. Com uma agravante: os heróis que legaram a vida em nome da pátria não estão lá para testemunharem a homenagem que lhes tributam.

Para um agnóstico, que não acredita na vida para além da morte, mais incompreensível se torna a heroicidade fatal. Concedo que haverá almas mais generosas, dedicadas ao devir colectivo que se sobrepõe ao sentir individual. Para elas fará sentido a entrega a actos de bravura que merecem o aplauso de outros candidatos ao heroísmo. Como concedo que haja crenças que asseguram a existência da vida eterna, mesmo quando o corpo se despede com o último suspiro. Para esses, o destino de serem carne para canhão: ensinam-lhes que, na vida eterna, flutuam sobre a terrena existência dos que permanecem vivos. O meio para verem, lá de cima, as sentidas homenagens que lhes são prestadas, a eles, heróis em nome de sacrossanta pátria, ou da religião exacerbada que leva tudo pela frente como se fosse um vendaval destruidor.

Será reconfortante dar a vida em nome da pátria ou da religião. Reconfortante por saber que a entrega é um acto em que o herói se despe da sua individualidade e corporiza todo um sentir colectivo. Como se a vida fizesse sentido em nome dos outros. A vida individual, apenas um pormenor; ela só se torna grandiosa quando um acto de bravura mostra a entrega pela causa de todos. Ainda que o sacrificial herói não esteja de olhos abertos para testemunhar os encómios e comendas que lhe são distribuídos, post mortem, em mais um momento de arrebatamento colectivo que o remete para a condição de vírgula de um extenso romance.

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