21.2.06

Bem prega Frei Tomás…

Um historiador inglês, David Irving, afirmou há dezassete anos, na Áustria, que o holocausto nazi não existiu. Dezassete anos mais tarde regressou à Áustria e foi capturado. Irving cometeu o crime de negação do holocausto. Na Áustria, a liberdade de expressão é condicionada: há certos tabus cuja profanação é irremissível. Quem quiser brincar com assuntos tão sérios, quem ousar duvidar da verdade oficial, arrisca-se a penar alguns anos nas catacumbas. Irving teve direito a um julgamento sumário. Vai passar os próximos três anos em detenção.

A oportunidade do episódio não podia ser melhor. O vulcão ardente que explodiu, depois dos cartoons do jornal dinamarquês em que Maomé era caricaturado com sátira, está agora amansado. É lamentável que as mesmas pessoas que se disseram dinamarquesas em solidariedade com o valor da liberdade de expressão estejam agora caladas, convenientemente caladas, perante a decisão do tribunal austríaco. Parece que a liberdade de expressão só funciona num sentido. Parece que o sentido de humor, oleado pela sagrada liberdade de expressão, só permite brincar com o que interessa parodiar; quando se vira a página para a segunda guerra mundial, as verdades estão instaladas e não podem ser questionadas.

Haverá diferenças. A reacção dos fundamentalistas islâmicos foi tão violenta que, através dela, perderam a razão. Ainda que se compreenda o direito à indignação da comunidade islâmica, ela devia perceber que a liberdade de expressão é um valor civilizacional do ocidente, um esteio. Quanto ao holocausto, não tenho a obrigação de aceitar acriticamente as verdades oficiais. Poderá ser pela minha pouca simpatia em relação a judeus, juízo politicamente incorrecto que deixo aqui lavrado.

Há uma declaração de Irving que diz muito acerca da polémica (cito de cor): “os governos não me podem forçar a escrever a história de acordo com as suas conveniências. Eu faço história pelo que os arquivos me mostram”. É verdade que há toda uma diferença entre as ideias de Irving e as patacoadas do embaixador do Irão em Lisboa, quando perorou sobre os seus cálculos privados acerca do número de pessoas chacinadas em campos de concentração nazis. Irving é um historiador, um académico. Responde perante critérios de rigor científico, não pode fazer história enviesada que siga as conveniências tácticas de determinados sectores. Como historiador, repousa num manto de credibilidade. O embaixador do Irão mais parece estar a soldo de interesses judaicos, tanto o ridículo com que se cobriu ao tentar negar o holocausto com a máquina de calcular avariada que empunhava, nas suas amadoras estimativas. Parecia o engenheiro Guterres a fazer as contas ao PIB nacional…

Em boa verdade, pouco me interessa se Irving é um historiador conceituado, ou se é persona non grata entre os seus pares. Tenho uma desconfiança metódica de verdades oficiais que não admitem teses contrárias. E custa-me a acreditar em quão inquestionáveis são essas verdades quando os dissidentes são tratados como leprosos que necessitam de uma quarentena purificadora. Aí a desconfiança sobe de tom: o hiato entre uma verdade oficial e um assunto tabu leva ao desmoronamento do tabu enquanto verdade consabida. Podem alguns ripostar: há assuntos com os quais não se brinca. A esses respondo: que haja a mesma bitola para assuntos de melindre comparável; será que se pode brincar com Maomé e não com o holocausto? Porquê?

Percebo que o holocausto seja matéria susceptível, pela proximidade de tempo e de espaço. Compreendo que haja pudor em questionar o holocausto, em homenagem às pessoas vitimadas. Bastará a aritmética para elevar erros históricos ao patamar de coisas incontroversas? A propósito, recordo-me de uma discussão que tive, em tempos, com uma colega de trabalho: perguntava-lhe se não tinha havido holocausto continuado, ao longo de décadas, nos gulags da antiga União Soviética. A resposta deixou-me boquiaberto: disse-me que não é comparável, porque não era enquadrado num conflito bélico (como o holocausto nazi) e porque tudo se passava no interior de um país, entre as respectivas autoridades e cidadãos (sem a dimensão internacional do holocausto nazi). Fiquei sem perceber se a matança continuada de seres humanos é uma coisa diferente quando os critérios do holocausto nazi não estão preenchidos…

Por defeito de personalidade, olho de soslaio para as entorses históricas e para as versões bíblicas que enfatizam o percurso sofrido de um povo, sempre martirizado, sempre perseguido. Confesso que a minha antipatia pelo judaísmo está na exacta proporção da permanente comiseração que os judeus reclamam aos olhos do mundo. Mantenho que tudo é passível de sátira – até os tabus hermeticamente selados. O passado está encerrado num sarcófago, lá atrás. Quando houver almas impiedosas que queiram mexer com o passado, que isso não seja entendido como manifestação de desrespeito pelas vítimas do passado. Apenas um exercício de sátira, enfim, a liberdade de criação.

Mas o melhor é ir para dentro, não vá ser acusado de anti-semitismo por uma patrulha de tabus impenetráveis que não deixam pôr em causa a iconografia judaica.

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