Salários avultados para trabalhos de poucos esforços. Alguns contemporizam, argumentam que eles merecem remunerações mais elevadas, dada a responsabilidade do que fazem. Não é por aí que me interessa entrar. Nem tão pouco pelas regalias a que têm direito, as mil e uma alcavalas a que deitam mão com a conivência das convenções estabelecidas: são representantes do povo e merecem ser compensados pela solenidade da sinecura.
Essas benesses convocam o foro da materialidade. Há-de haver quem aceite o generoso tratamento dedicado aos políticos pela importância da função, pela entrega à chamada “causa pública”. Como há-de haver quem suspeite do altruísmo dos “voluntários” da coisa pública, desfiando um rol de compensações invisíveis durante e após as funções. Para o que interessa hoje, é uma discussão estéril. Indigno é que alguém, da classe política, proponha que os membros da casta só possam ser julgados por tribunais superiores. Já não é do foro da materialidade que se fala, mas de outro mais grave – o dos princípios.
Ensinam nas faculdades de direito (e nas escolas secundárias onde os adolescentes tomam contacto com a introdução ao direito) que a lei é geral e abstracta. Decifrando o tecnicismo, que a lei é cega, não olha ao rosto de quem se coloca a jeito da sua aplicação. O princípio tem uma aplicação problemática. Primeiro, a suspeita de que, por vezes, quem aplica a lei contribui para a entorse do princípio. Quantas são as vezes em que os poderosos da nacional paróquia escapam às malhas tecidas pela lei, como se vivessem numa aura que os coloca acima da justiça feita à pessoa comum? Segundo, e mais grave, quando o legislador – uma das vestimentas da casta política – faz leis à sua medida. Mandaria a imparcialidade que um mínimo de decoro impedisse os políticos, enquanto legisladores, da produção de leis que os favorecem entre os demais.
Terceiro, uma dimensão escondida do problema. Quando se trata de chamar deputados à justiça, eles gozam de imunidade parlamentar. Como se fosse um cinto de castidade que protege contra as investidas de furiosas entidades que querem saciar o seu apetite sexual, a imunidade parlamentar garante o sossego de suas excelências. Tantos os episódios em que suas excelências se acobardam na imunidade parlamentar que a justiça fica em banho-maria, à espera que as eminências pardas tenham o bom senso de se entregarem nos braços da justiça, como o têm que fazer os representados. É o direito que não se aplica aos eleitos, só aos eleitores. Em rigor, a proposta de os julgar em tribunais superiores nem sequer faria corar de vergonha o mais incauto, porque raras são as vezes em que suas excelências, os parlamentares, se oferecem para sentar o rabo no banco dos réus.
Não são os detalhes da prática que importam, antes o plano dos princípios. Se somos um Estado de direito, e se um dos seus esteios é o princípio da igualdade de todos perante a lei, a possibilidade da casta superior ser julgada por tribunais superiores é um atentado ao princípio. Aos poucos, o governo vai mostrando a veia salazarenta de que este povo não se consegue desprender. É congénito.
O exemplo do julgamento de políticos por tribunais superiores, dando razão à orwelliana profecia de que uns são mais iguais do que outros, anda de mão dada com outra proposta impensável, do cunho de não confiável personagem (o ministro de uma coisa qualquer, Augusto Santos Silva): este governo quer assegurar a liberdade de expressão nos órgãos de comunicação social através de um reforço dos poderes da entidade reguladora, a quem serão dados meios para impedir excessos de liberdade de expressão. O problema está na fronteira volátil entre liberdade de expressão e excesso de liberdade de expressão. Quem o decide terá agendas pessoais escondidas, trazendo a incerteza para o plano da liberdade de expressão. Desconfio que o lápis azul de outrora será substituído pelo lápis cor-de-rosa com a chancela da superioridade intelectual de Santos Silva.
Das duas uma: tudo isto me faz apetecer mudar de poiso, emigrar para outras paragens mais civilizadas; ou então tudo isto não passa de uma brincadeira de Carnaval.
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