Era uma vez um edifício fantasmagórico, onde a hedionda polícia política da ditadura torturava dissidentes. O edifício está abandonado, degradado. Dele restam as memórias de um passado vergonhoso. Um passado que não convém obliterar do registo histórico, mas que não deve pesar sobre o nosso futuro como uma espada que ameaça voltar a cair a todo o momento.
O edifício é um mastodonte que infecta o centro de Lisboa. Pintura desbotada, bocados de cal que se desprendem da parede, a ameaça latente de ruína. Um museu vivo do que é hoje a ditadura encerrada há mais de trinta anos. Apenas uma lamentável recordação da soberania individual espezinhada por um regime que velava a soberania da nação, como se a nação se sobrepusesse ao indivíduo. Por hoje, já em democracia, há tantos que continuam a acreditar no mesmo – que a soberania do ser deve sucumbir perante a soberania do colectivo. Diferem nos métodos, por não torturarem aqueles que divergem.
Pelo meio da especulação imobiliária que toma conta das cidades, alguém teve a ideia de arrasar o edifício que foi sede da PIDE para construir um condomínio de luxo. Logo saltaram da toca alguns auto-proclamados guardiães da memória “anti-fascista”. Constituiu-se uma associação para impedir que se apagasse da memória este traço indelével do que foi o passado negro da ditadura.
Se há coisa que me deixa perplexo, é o apetite da pessoa para viver agarrada ao passado. Ou porque há tradições aberrantes que são perpetuadas, como se fossem um pedaço do passado transportado até ao presente. Ou porque há registos lamentáveis da História imortalizados em museus, como se os antepassados quisessem mostrar às gerações vindouras uma amálgama de destroços do que eles viveram, dos sacrifícios passados para legar às gerações actuais um presente de tranquilidade, de exercício pacífico das liberdades individuais. É o clamor sôfrego para não varrer da memória os traços sombrios do passado ditatorial. Há momentos de grandiosidade que continuamos a glorificar, como temos uma vontade indómita para relembrar, e de preferência a cada dia que passa, o fantasma do “fascismo” que atormenta as teias de aranha da tumba bem funda onde está enclausurado.
Temos um registo histórico que não pode ser renegado. O bom e o mal são património genético da nossa História colectiva. Não se pode reescrever a História para apagar os momentos de que não nos orgulhamos. Não compreendo como certas personagens vivem paradas no tempo, como se sentissem a necessidade de lamber todos os dias as feridas abertas de um regime que não deixou boas recordações. Dizem-nos que não podemos esquecer os desmandos da ditadura, os sofrimentos de quem esteve entregue às torturas dos carniceiros da polícia política, para que o futuro se lembre, sempre, de preservar a liberdade. Para eles nunca é demais recordar as máculas do passado, não venha a erguer-se de novo o fantasma que cerceia as liberdades individuais.
As personagens que não esquecem o passado querem manter vivos os traços desse passado – ainda que seja um passado sem orgulho. Recusam-se a ver no local da sede da PIDE um vistoso condomínio de luxo. Acham que é um atentado à memória colectiva, um desrespeito por tantos quantos padeceram sofrimentos indizíveis às mãos da PIDE. Temo que em vez de não quererem que o passado seja esquecido, estas personagens não saibam fazer outra coisa senão viver do passado. Sem horizonte outro que não seja o tempo que passou, desdenham do tempo presente e vociferam o amanhã que há-de vir. Fiéis à ideia que ainda não ajustámos as contas com o passado vergonhoso da ditadura. Mesmo que já tenham passado trinta e dois anos após o funeral da ditadura. Mesmo que as maiores ameaças à democracia – que hoje vêm de franjas que se recusam a esquecer o passado “fascista” – sejam inexpressivas e desacreditadas.
Neste afã de reviver o passado enegrecido, vejo a urgência em manter abertas, e bem fundas, as cicatrizes da ditadura. Como se fossem os fautores de um céu pesado, com nuvens plúmbeas, de chicote em riste para que todos os membros do rebanho vivam atormentados com o seu passado colectivo. Um exercício irreprimível de má consciência, como se nunca pudéssemos esquecer os episódios do passado conjunto que nos alimentam a má consciência.
Da minha parte, recuso-me a reescrever a História. Como não me permito viver refém do passado, sobretudo de um passado de que não posso ser responsabilizado. Sim, um condomínio de luxo é preferível a manter de pé um dos esqueletos da ditadura, ainda por cima na sua pior expressão – a PIDE. Se estaria disposto a comprar ali um apartamento? Não, porque não me sentiria confortável ao saber que o meu sono seria feito no local onde outrora tantos estiveram entregues a torturas. Mas admito que haja pessoas a quem este aspecto não seja importante na hora de decidir onde viver. Entre estes ascetas do futuro e as almas penadas do passado “fascista”, prefiro os que têm a capacidade de olhar de frente para o futuro.
1 comentário:
"O bom e o mal são património genético da nossa História colectiva. Não se pode reescrever a História para apagar os momentos de que não nos orgulhamos."
"Recusam-se a ver no local da sede da PIDE um vistoso condomínio de luxo. Acham que é um atentado à memória colectiva, um desrespeito por tantos quantos padeceram sofrimentos indizíveis às mãos da PIDE."
"Se estaria disposto a comprar ali um apartamento? Não, porque não me sentiria confortável ao saber que o meu sono seria feito no local onde outrora tantos estiveram entregues a torturas."
Contradições e mais contradições.
Primeiro, a história é pertença colectiva e não a podemos apagar quando nos convém. Segundo, "recusam-se" a ver um vistoso condomíno de luxo. Recusam-se quem? Então defende a construção?
Terceiro, não compraria ali apartamento para não ter que levar com os fantasmas da PIDE. Ainda no ponto anterior criticava quem queria o condomínio de luxo.
Em quê que ficamos? A história deve ou não ser apagada? Deve ou não ser construído o tal condomínio de luxo?
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