25.12.07

As tradições são perenes?


Não há contradição entre as tradições e a evolução da sociedade? A defesa arreigada das tradições fertiliza um conservadorismo que se demite de fazer interrogações às coisas. Encera os claustros dos costumes herdados da ancestralidade. Dizem que as tradições são o cimento de uma identidade colectiva. Que um povo perde razão de ser se perder a orientação das tradições que relevam da história, tradições substrato de uma cultura. Intangíveis, as tradições sublimam-se na sua existência. Ganham, até, uma espessura sagrada. As tradições não se questionam; cumprem-se obedientemente, rotineiras, rituais obrigatórios que abraçam a idiossincrasia de um povo.

Só que as tradições trazem muita espuma do imobilismo que é adversário da mudança. Quando tantos concordam no caminho degradado percorrido, o discernimento exigiria a reparação do caminho, ou dele se afastar de vez caso fosse irreparável. Só os loucos, ou os que envergam a mortalha da irracionalidade, teimam em seguir por onde o caminho é espinhoso. A menos que de tanto estarem habituados, já nem consigam reparar nos espinhos que ferem à medida que o percurso se consome. Quem se contenta com o mal que lhe bate, doloroso, no peito? E, contudo, a resignação vem falar mais alto. Como se estivéssemos anestesiados pelo poder transcendental das tradições. Nos interstícios das tradições, sazonais ou circunstanciais, soa o coro das lamentações pelo atraso que somos.

Não digo que as tradições, todas as tradições, sejam por definição sinónimo de bafiento atraso, a purulenta aguadilha de uma idiossincrasia. O problema está na subjectivação das coisas. Há tradições que fazem sentido para alguém e que são insensatas para outros. E, logo a seguir, haverá outras tradições que são objecto de culto para estes últimos e destituídas de sentido para os primeiros. Para além do obstáculo da subjectivação, ergue-se nas tradições a sua prístina substância. Alguns dizem que há nas tradições uma homenagem aos antepassados que dobraram à força do pulso e a custo do tanto suor o que somos hoje. Duvido que seja a melhor justificação das tradições. Pois se tantos desdenham do que somos o que somos hoje, decerto haverá muitas culpas a distribuir pelo legado das gerações ancestrais.

Não vou dizer que não seja cultor de nenhuma tradição. Algumas têm mais significado, outras dizem-me nada. Eis o que me inquieta: quando interrogo o sentido das tradições que cultivo, não encontro respostas que me satisfaçam. Em muitos casos, apenas um arremedo de justificações que esbarram sempre no derradeiro argumento: “porque é tradição”. Como quem diz, “porque sim”. Há, neste travo de irracionalidade, o lado perturbante das tradições: não discernir explicação lógica para que elas continuem a espalhar-se por todo o lado, a aspergir as pessoas, que as tradições sejam perfunctórias. Perante a sibilina natureza das tradições, as pessoas demitem-se do papel inquiridor. Acatam as tradições, acríticas, sendo a charneira que perpetua as tradições no tempo.

Algumas tradições têm o travo religioso. Outras adornam evocações religiosas com a interpretação popular, na condensação do paganismo. De uma forma ou de outra, as tradições encerram-se no sagrado que é tangente à religiosidade. O que explica a pose acrítica perante as tradições. Há sempre coisas na vida que não convém interrogar, nem sequer indagar da razão da sua existência. A ontologia das coisas pode reproduzir respostas ingratas, semear o vazio que se insinua depois de queimar um terreno outrora preenchido pela densidade das silvas estéreis. A queimada revela um terraplanado que modifica a paisagem, exigindo habituação. As coordenadas que orientavam o pensamento, modificadas. E o próprio pensamento é repensado. As tradições questionadas são um esteio da desconstrução do espírito, com as tremendas dores da redefinição das pessoas perante as coisas que lhes dizem respeito.

Entre o imperativo de questionar as tradições e o imperativo categórico das tradições em si, vinga a confortável posição da letargia perante as tradições. Que vão passando de geração em geração como rituais de pertença, mesmo que a evolução dos tempos e das gentes sopre ventos de inconstância diante dos sedimentos de algumas tradições. Nessa altura, mais vale sufocar os ventos de mudança para não questionar as sagradas tradições. Estruturalmente, as tradições são de uma perenidade quase absoluta. A bissectriz do conservadorismo. E o lastro do definhamento da autonomia intelectual das pessoas.

Sem comentários: