19.12.07

O povo que espreita detrás das câmaras, empunhando telemóveis – e os assessores em bicos de pés detrás do senhor ministro


A democracia no seu esplendor: também a televisão se democratizou. Hoje contam-se pelos dedos das mãos as pessoas que nunca apareceram no ecrã da televisão. Todos têm direito a uns segundos de fama, ali expostos aos olhares de quem, por acaso, estiver naquele momento a olhar para a televisão.

O desporto favorito da populaça é quando os repórteres de exterior saem à rua, perfilando-se como guarda de honra durante o directo. Acotovelam-se na ânsia do melhor quinhão da imagem – ainda que não estejam detrás dos olhos do operador de câmara que, ele sim, selecciona o plano e escolhe os figurantes que se prestam ao “embelezamento” da reportagem. Mas a populaça atropela-se, empurra-se, desunha-se por figurar em primeiro plano. Que é como quem diz, em primeiro plano atrás do repórter aflito por terminar o directo, de tão acossado pela populaça.

O povo, habitualmente ignaro, confia que o seu rosto irradiando felicidade apareça na televisão. Faz lembrar aqueles fotógrafos que esticam a máquina e disparam uma revoada de fotos, pois uma fotografia decente há-de sair no meio da amálgama de sombras e escuridão. É assim a populaça ruidosa que, em magote, faz a guarda de honra ao repórter de exteriores. Atiram-se, por estimativa, para trás do repórter. Com sorte, hão-de ter dias a fio de conversa de cada vez que se cruzarem com a família, os amigos na tasca e os companheiros de trabalho. Exigindo que os holofotes imaginários continuem virados sobre eles, na glória fácil de serem mimoseados pelos entes queridos, amigos e colegas. Por esses dias, tornam-se efémeros heróis.

Do quadro faz parte um ingrediente obrigatório: a ajuda da tecnologia emoldura a prova de que fulano apareceu mesmo na televisão. Não vão os seus duvidar que perfilou na retaguarda do repórter, aproveitam os instantes de glória pública para telefonar a um familiar, a um amigo na tasca a ver a televisão, a um colega do trabalho. Em gritos ofegantes avisam o interlocutor para mudar para o canal onde naquele instante são heróis acidentais. A turba que estaciona lá atrás empunha os telemóveis, discando o número da mãezinha, do amigalhaço dos copos, ou daquele colega que está sempre com inveja. É um duplo desfile: de anónimos que por fim aparecem na televisão e dos respectivos telemóveis, debitando as palavras triunfantes enquanto dura o directo, enquanto os seus olhos decantam um sorriso de tórrida felicidade.

Há uma versão alternativa a esta actividade circense. Mete ministros em visitas oficiais, com o habitual cortejo de pajens: secretários de Estado, directores-gerais, assessores, o autarca da terriola, até a governadora civil. (Havia tanto a dizer da glorificação de funções dos governadores civis, essas peças abstrusas que ornamentam a organização administrativa do país!) Entre a propaganda que escorre a rodos, sobretudo quando os microfones se estendem na direcção das sábias palavras do ministro (por norma, sem direito a contraditório dos plumitivos), salienta-se a pose estudada do director-geral e do assessor, ladeados pelo autarca donairoso em fatiota das idas a casamentos. Todos em bicos de pés, rivalizando pela melhor fatia da imagem atrás do senhor ministro. Aparecem para os seus momentos de glória e reconhecimento público. Mesmo que pouca gente saiba associar o nome do figurão à cara de estadista em tirocínio que estacionou detrás do ministro. Na próxima remodelação do governo, pode-lhes sair a sorte grande.

Vejo estes directores-gerais, assessores e autarcas em fecunda conquista de protagonismo e lembro-me da populaça que corre desaustinada para trás do repórter prestes a entrar em directo. Uns e outros fazem-me lembrar a infância, quando pregávamos partidas uns aos outros e depois dizíamos, em pose triunfante, aos incautos apanhados na ratoeira: “ó patego, olha o balão!

Um desejo inscrito na rota do futuro: que a televisão não seja ainda mais um negócio, que não aumentem os canais codificados que exigem pagamento de tarifa proibitiva. Se isso acontecer, é o funeral da democratização da televisão. Os directos em canais codificados não servem de testemunha dos actos heróicos dos anónimos que finalmente conseguiram entrar na pantalha, pois a reportagem terá pouca audiência. Nem os exércitos de funcionários públicos em desalmada construção de carreirismo poderão, no dia seguinte, ostentar o ar tão importante que a aparição fugaz, no papel de sequazes do ministro, lhes confere. Eu diria que isto é motivo para produzir legislação com efeitos perenes: por lei, haveria de ficar garantida a existência de canais sempre abertos ao público, para o povo se fitar neles enquanto deambulam as reportagens em directo.

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