10.12.07

A valsa dos facínoras


Os homens não têm consciência? Os paladinos do pensamento certo, que não se cansam de apregoar o caminho que os bons cidadãos hão-de percorrer, conseguem recostar a cabeça na almofada ao fim do dia, depois de terem amesendado com déspotas da pior espécie, depois de terem cumprimentado facínoras africanos que se passearam na sua vetusta altivez? Quantas vezes terá o primeiro-ministro lavado as mãos depois de cumprimentar Mugabe, Khadafi e outros espécimes grotescos? Quantos litros de água para lavar as mãos tocadas pelas mãos ensanguentadas dos facínoras que ele apadrinhou em Lisboa?

É vergonha, uma profunda vergonha, que sinto ao saber que fomos mestres-de-cerimónias numa cimeira lamentável. Que demos guarida a ditadores da pior espécie e, ainda por cima, proclamámos (melhor dizendo, alguém proclamou por nós) o princípio da negociação em paridade. Como se fosse necessário proclamar o que só as palavras escondem no seu contrário. Eu tenho vergonha de pertencer a um país que tem um primeiro-ministro que se auto-congratula com o festim com próceres arrepiantes manchados por banhos de sangue. Por omissão, esse primeiro-ministro, e toda a corte que o apascenta, acabam cúmplices de todo o sangue derramado pelos facínoras que desfilaram rodeados pelo requinte que neles exala o odor fétido da obscenidade.

A cimeira UE-África teve um lado higiénico: num esforço quase sempre vão de me exilar das notícias e dos noticiários, consegui este fim-de-semana fechar a janela a noticiários. Bastou ver algures uma fotografia de Sócrates a estender a mão a Mugabe. E ver como o alucinado Khadafi cirandava por aí, numa pose abstrusa, destilando disparates com a impunidade que a personagem com tiques de realeza permite. Quis fugir deste pesadelo. Afogar a vergonha escondendo-me da cimeira onde a Europa negoceia em pé de igualdade com déspotas, tiranos, facínoras, cleptocratas e com outros dirigentes que conseguem passar no crivo dos próprios princípios de “boa governação” que a Europa laboriosamente tece para encher uma retórica vácua.

Envergonho-me de ter sido o país onde nasci que apadrinhou o regresso das cimeiras UE-África. E mais me envergonho da autocontemplação pátria, como se aplaude demoradamente o feito de termos sido mestres-de-cerimónia de uma encenação grotesca, de como acolhemos de braços abertos um cortejo de personagens que mereciam apodrecer em cadeias imundas, pelas atrocidades que cometeram a continuam a cometer. Maldita diplomacia. Maldita política que varre para debaixo do tapete crimes hediondos e amesenda com os facínoras que deviam estar sentados no banco dos réus de um tribunal internacional de direitos humanos. E maldita doutrina do “realismo”, que ensina que os negócios dos Estados falam mais alto que atrocidades dos verdugos. Por estas alturas, apetece mudar de planeta.

Pelo que tenho lido, as televisões nacionais aprimoraram a congratulação do governo, com especial destaque para o seu timoneiro, cada vez mais elevado ao altar do messianismo internacional. O homem aparece, em pose masturbatória, em intermináveis auto-elogios que servem para os ingénuos se convencerem que é o nosso salvador. Tanto que nos quer convencer que é, aos olhos do mundo, um importante personagem que desata os nós de negociações que tinham adormecido ou caído em impasse. Foi assim com a Constituição da União Europeia, que “ele” soube salvar e, para gáudio dos que se ufanam com o orgulho pátrio, transformou no Tratado de Lisboa. Teremos mais do mesmo, com a figura a surgir envaidecida como mestre-de-cerimónias num espaço de poucos dias, quando for assinado o Tratado de Lisboa no dia 13 de Dezembro. Mas é isso que ele é: mestre-de-cerimónias, não o herói internacional cuja imagem é zelosamente fabricada para consumo doméstico.

Eu gostava de saber se estes homens não ficam arrepiados quando as suas mãos tocam as mãos dos facínoras que vieram até Lisboa. Gostava de saber se sustêm a respiração, se é muito o esforço para esboçarem um sorriso quando lhes aparece pela frente mais um ditador sórdido, se a maquilhagem compõe o sorriso amarelecido que fazem, contristados. Ou se o sorriso é aberto e espontâneo e, com isso, dão o beneplácito aos déspotas com que conviveram durante três dias.

Quem se dá com gente pouco recomendável e, no final, surge com discurso congratulatório e pose masturbatória, só pode ser, também ele, gente pouco recomendável.

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