13.12.07

Se ao menos tivesse um reino


As sombras, pesadas, abatem-se sobre o firmamento. Escurecem-no, como se não houvesse porta de saída num túnel estreito onde mal cabe o corpo. Ao longe, o som de gritos aflitivos. Misturam-se com o grasnar dos patos que esvoaçam sobre a água do lago, parecendo fugir em pânico de um fantasma que os afugenta para um refúgio ideal. Até o sol que, tímido, espreitava por entre a cama espessa de nuvens, partiu para algures. Sobra a luz vertida nos cantos, mal alumiando os passos que vão errando, incertos. As flores encerram-se sobre si.

Este vento agreste cansa. Tal como os dias consecutivos de sombras que escondem a luz clara. As forças consomem-se no sobressalto contínuo. Tão contínuo que a normalidade é feita de sobressaltos que se entranham nas veias, são o seu próprio sangue. Até pela noite, quando a cabeça repousa na almofada, a inquietação é perene. No dia como na noite, até pelo sono fora, tomando conta dos sonhos que não deixam o sono ser o sossegado repasto dos dias sobressaltados. A desordem dos sentidos apodera-se da carne. Desdobra-se em páginas mil apoquentando a existência, remetendo o espírito para longínquas deambulações que temperam o horizonte com as cores entristecidas.

E, todavia, há fatiga a cada dia que se desdobra nesta imensidão que esbarra com estrondo no peito da existência. Sempre nas alvoradas uma vontade indómita de mudar de vida, ou de mudar a vida. Liquidar as tempestuosas avenidas que os pés revisitam todos os dias. A forte tentação de descobrir outras ruas que levem ao mesmo lugar, ou talvez até a lugares diferentes, onde planem pássaros coloridos a debitar um chilrear melodioso, onde o sol deixe cair as pétalas que consagram a refulgência dos dias que nascem para o arrebatamento das coisas.

Os instantes que povoam a alvorada, ainda no estremunhar matinal, transtornam os sentidos. Por instantes, ainda adornado pelo discernimento embaciado da alvorada, o pensamento emigra para campos cheios de flores, vastas planícies que só ao longe terminam nas montanhas abruptas que convidam à aventura da vida. É nesses instantes que o pensamento trepa as amuralhadas peias do reinado onde tudo é diferente. Onde os pequenos nadas são sagrados como se fossem os logradouros de toda a sabedoria, a glória maior de pertencer ao reinado onde só cabem as pessoas adoráveis, as coisas belas que merecem poemas diários, as palavras entontecidas que anestesiam os maléficos querubins.

Um reinado exclusivo. À medida. Sem estorvos, nem espinhos semeados no caminho, com as pedras pontiagudas deixadas na berma, bem assinaladas para não serem pisadas. Um reinado onde não haveria reis ou suseranos, vassalos nem súbditos. Nem igualdade. Onde as nuvens acobreadas do fim do dia desvendariam segredos que a noite resguarda. O palco para coreografias arrojadas onde os corpos se desenvencilham das algemas que os aprisionam numa autómata condição, fazendo das gentes sucedâneos de uma essência imposta. Coreografias mágicas, ao som de melodias que aglutinam as notas musicais em composições fantásticas, com o dedo de músicos que o não eram e, num passe de magia, passaram a ser.

Um reinado sem ordem imposta, nem polícia, nem mandantes, ou sequer adoradores da desordem instituída pelo desdém dos outros. Uma adocicada e ingénua utopia – ou apenas um exílio interior, profundo, um lugar qualquer onde tudo seria tão diferente do acidentado quadro onde onde se pintam, com pinceladas grotescas, as cores esbatidas do que a vista alcança. O exílio interior onde estariam à espera as ideias que interessam, as palavras impregnadas de sentido poético, o nutriente maior para uns olhos irradiando um sorriso perfumado. Onde nem o frio gelasse as veias, ou o calor diluísse o juízo, a chuva tombada sobre os cabelos molhados seria o tempero do espírito e o sol o pasto para a deposição dos amantes. Um reinado onde não houvesse o imperativo dos sacrifícios, como se fossem o caminho necessário para a redenção. Nem a superação do que somos pelo fingimento obrigatório que a convivência social impõe.

Tudo seria resplandecente, até o céu plúmbeo na sua beleza inaudita. Na incandescência dos sentimentos, o lastro de um reino encantado sem lugar aos precipícios que, quando chegam, já fazem troar a sua implacável dor.

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