5.12.07

De que cor é o céu?


(In Público, 04.12.07)

Não é o Sporting que está em crise; é a igreja católica. As estatísticas, apesar da manipulação a que os números sempre se prestam, não mentem: menos padres, menos fiéis, missas menos concorridas, dúvidas metafísicas, dogmas anacrónicos, uma moral teimosamente antiquada, a persistência em comandar as almas, os padres que já não possuem a autoridade de outrora – eis uma amostra das amarguras existenciais da igreja. Mantêm-se ainda privilégios num Estado que só aos olhos da lei é laico, pois nos costumes permanece conservador. Há uma certa fé que se confunde com superstição: o receio de serem tomados por “ovelhas tresmalhadas”, abandonados pelo deus em que deixaram de crer – com a inapelável contradição de termos que o temor encerra.

Perante o divórcio dos fiéis – dos que ainda o são e dos que já abandonaram o rebanho – a liderança eclesiástica repensa estratégias. O público puxão de orelhas que o chefe supremo deu em Roma, há umas semanas, a tanto obriga. De repente, a igreja depara-se com um dilema. Sem arranjar cura para o reumatismo que a incapacita para os desafios da modernidade, mas obrigada a beber inspiração nos manuais de estilo da modernidade. Como captar fiéis sem deixar cair a mácula do conservadorismo bafiento que atravessa a doutrina oficial? Como chamar os jovens, sobretudo os jovens, se as prédicas dos sacerdotes e a vida cada vez mais “mundana” dos jovens estão em antinomia?

Sugere-se a mudança de estratégia. O recurso ao marketing, calcorreando os meandros da modernidade tão vituperada. Mas o marketing não apela a valores (o consumismo) heréticos para a igreja tributária de valores mais empedernidos e ancestrais? Passaremos a ter a igreja com anúncios na televisão, aliciando as massas a comparecerem no culto dominical contra a oferta de uma coisa qualquer? Seria a blasfémia: em vez de serem os crentes a depositarem as habituais moedas na oferenda a meio da missa, à saída seriam agraciados com um vale de compras no hipermercado mais próximo.

Antigamente, talvez pela ignorância que fervia a espuma da fé, o medo do inferno era o estigma que trazia as pessoas para o refúgio das igrejas. Penitências e rezas, de permeio com exibições de generosidade que iam comprando um quinhão no céu, para que na hora da extrema-unção os querubins que franqueiam a dimensão celestial já espreitassem, sossegando os suspiros finais com o convencimento de que os pecados não chegariam para encomendar a alma ao inferno. Um dos faróis do progresso é a instrução das gentes. Informadas, sabem discernir a fé do temor reverencial que deus inspirava. A fé que existe – sobretudo entre os mais novos e os mais esclarecidos – é mais genuína, não tão tomada pelo medo de apodrecer no inferno.

As cores do céu devem ser de uma tranquilidade balsâmica. Esta poderia ser uma aposta séria dos consultores de marketing a soldo da igreja. Anúncios de página inteira em jornais de grande tiragem, com um azul retemperador, afinal o leito que iria acolher os corpos cansados de uma vida inteira a amargar as penosas veredas terrenas. Tudo encimado por palavras fortes (aceitam-se sugestões de aprendizes de publicidade), o lenitivo para regressar aos templos onde se espalha a verdade na versão católica.

Por mais que me atormente a morte, não consigo cair na ilusão de mim mesmo e entregar-me nos braços da religião. Seria a solução mais cómoda: no fim, traria o convencimento de que, portando-me bem durante o trajecto terreno, um quinhão do céu estaria reservado em meu nome. Só que ninguém me consegue garantir a cor que o céu tem. Faz sempre sol, resplandecendo um céu azul que empertiga poetas e adoradores de climas exóticos? Gosto de alguns dias de céu tapado pelas nuvens carregadas de chuva. E se o lugar do céu onde gravita a placa com o meu nome está numa geografia britânica de tantos dias de céu plúmbeo? Uns dias claros vinham sempre a calhar, a libertação da monotonia das nuvens que remetem o sol benfazejo para as calendas que nunca chegam. Ou até se pode dar o caso que o céu a que terei direito seja um céu nocturno, um breu apenas ornado com as minúsculas centelhas das estrelas, um céu tão enegrecido que me deixa embotado. A noite não me inspira.

Nem os maiores teólogos têm a resposta para a inquietante pergunta. Nenhum sabe de que cor é o céu. Será sinal de que o céu é uma miragem, só o isco que apetece morder na ânsia da “libertação final”. Também os peixes vão no engodo e mordem o isco. Preciso de lembrar o que lhes acontece depois?

1 comentário:

Anónimo disse...

é por estas e por outras que a minha crença me diz que vais libertar as minhas cinzas no Autódromo Nazionnale di Monza! Ou então uma segunda hipótese: Col du Turini, mas temos de ir lá ainda em vida para decidir o que fazemos...