7.12.07

Envelhecemos; e depois?


Assusta-nos a velhice que se anuncia? Os lugares comuns multiplicam-se, sinais da velhice que vem tomando conta da baía da existência. Ou os cabelos brancos que assentam nas laterais, como se fossem os flocos de neve deitados depois de um passeio retemperador. Ou as rugas que transformam a face, as indeléveis marcas do tempo que veio curtir a pele enrugada, prova de mil vicissitudes ou apenas do tempo mais plácido que se cruza com a vida. Ou o corpo que já não responde como nos tempos áureos da juventude, amordaçado pelo cansaço, emperrado, domado pela sua preguiça sintomática do envelhecimento. Ou as mazelas do organismo, um cocktail de doenças e medicamentos que as combatem mas deixam o travo amargo da dependência de químicos, outro sinal da juventude arrematada.

Envelhecemos e parece que se apodera de nós um instinto suicidário, diria paradoxal, de combater o envelhecimento. Como se envelhecer não fosse da ordem natural das coisas. Uns caem no encanto da indústria cosmética. Cremes de rejuvenescimento da pele, na crença de que as rugas vertidas são, por milagre, diluídas com camadas metodicamente acumuladas das gordurosas quimeras. Outros buscam o elixir da juventude já dobrada noutros sinais – num automóvel que sinaliza juventude, em roupas pateticamente juvenis, no que seja. Há quem envelheça e se recuse a admiti-lo, debatendo-se em si mesmo numa luta destinada à derrota. Houvesse no envelhecimento a vergonha dos anos contados. Houvesse no envelhecimento a recusa de si mesmo.

E, todavia, há no envelhecimento o seu próprio elixir. Uma nostalgia do futuro. De cada vez que os olhos espreitam por detrás do ombro revisitando a juventude encerrada, só tempo precioso desperdiçado. De cada vez que resgatamos o passado como pretexto para negar o envelhecimento, paradoxalmente apressamos a velhice. O desgaste da nostalgia reflexiva é uma tontice a que nos entregamos. Dir-se-ia que há arrependimento, e não grande saudade, da juventude já emoldurada. Através da nostalgia que resgata a juventude mergulhamos na negação do envelhecimento, na vergonha do que nos tornamos. Sem dignidade.

Só que o envelhecimento traz o seu próprio elixir. Pela sagração dos dias que hão-de ser testemunhas de cada passo do nosso envelhecimento. Do tanto que cumpre fazer, projectos idealizados ou apenas as conquistas que o fluir espontâneo dos dias vai trazendo. Os muitos livros, filmes, música, quadros; ou as muitas conversas com pessoas queridas, ou as pessoas desconhecidas que o hão-de deixar de ser; ou os locais nunca dantes visitados; ou a luz diferente dos dias que, por serem novos, são diferentes também; ou, o que seja do agraciamento da vida. É esta a nostalgia do futuro que só o envelhecimento consegue encerrar. O que interessa voltar ao passado se nessa deriva existem os fragmentos de rejeição do tempo que ainda haveremos de viver?

Quando envelhecemos semeia-se o Outono da nossa vida. E há toda a beleza misteriosa da outonal estação. A começar na ordem natural das coisas, que nem a ciência mais sofisticada consegue iludir. A cada passo que a tentação da nostalgia do passado fala mais alto, através da resistência árdua perante o envelhecimento, perseguimos a refulgência das ilusões que são isso apenas, ilusões. A maior homenagem a nós mesmos é a celebração do envelhecimento que se anuncia a cada aniversário dobrado. Alguns dirão que há resignação neste diagnóstico – com a ressonância a derrota que a resignação transporta consigo. Que há alguma terapêutica na nostalgia pela juventude que desenfreadamente se tenta resgatar. Eu direi que não é resignação. É da ordem da natureza. E que o dever que temos com a nostalgia do futuro não admite que sejamos errantes peregrinos pelos caminhos registados no livro das memórias. E só no livro das memórias. Tão intangíveis como as memórias.

Às vezes marcamos encontro com o alfabeto da tontice quando nos deixamos aprisionar pela juventude já arrematada, como se esse fosse o milagroso elixir do rejuvenescimento que a recusa do envelhecimento cauciona. Ao contrário do que parece, a prisão está no passado emoldurado, não na nostalgia do futuro. Essa é libertadora. Tão libertadora quanto a degustação da vida o permite. Ao envelhecermos, todas as agruras que esbarram contra o peito, todos os sinais da velhice, são compensados pelo dom maior de sermos vivos.

Envelhecemos; e depois? Que venha muito envelhecimento para celebrar.

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