Às vezes, praticar cinismo é exigência de higiene mental. O problema do cinismo é que tem sempre um alvo. Há alguém a quem o cinismo se destina. Uma dialéctica de conflito entre aquele que destila o cinismo e o destinatário. Há um lugar confortável para o praticante do cinismo e o incómodo sofrido pela vítima do cinismo. O desequilíbrio mostra o lado envenenado do cinismo. Por isso é que os espíritos bem pensantes censuram o cinismo. A fúria moralista avassaladora arremete contra a indignidade dos aduladores do cinismo. Opõem-se ao veneno destilado pelos cínicos, contra a reverberação de uma luz intensa que humilha os incensados pelo cinismo.
O sabor oposto do cinismo é sentido quando alguém o pratica e depois é vitimado por uma dose letal de cinismo. Esse é outro problema do cinismo. A cicuta lançada contra os alvos do cinismo, a mesma cicuta que é tragada quando mais tarde a mesma pessoa acolhe no regaço as dores humilhantes do cinismo. É nessas alturas que o peito se abre à introspecção, interroga se não houve injustiça quando lá atrás fomos pródigos no exercício do cinismo letal. A interrogação só aparece quando ao sacerdote do cinismo cabe em sorte ser sua vítima às mãos de outros sacerdotes do cinismo.
A metodologia da dúvida resplandece nesses momentos de digressão pelo interior, em revisitação do passado em que tanto cinismo foi destilado. Não parece um exercício espontâneo. Poderá aparentar arrependimento, agora que em vez de fautor surge no papel de sacrificado no altar do cinismo alheio. Eis porque o arrependimento aparece tão distante da espontaneidade. É um oportunismo incendiado pelas dores lancinantes de quem se sente vitimado pelo cinismo alheio. Entre o desconforto de ser alvo do cinismo, assomam à superfície os episódios em que outros pereceram às nossas mãos ensanguentadas de implacável cinismo.
Apoquentado pelo incómodo do cinismo que veio bater à porta, falta discernimento para assumir de peito aberto o cinismo semeado pelas veredas do passado. Tudo se passa como se houvesse um apelo interior para expurgar do livro aberto o cinismo espalhado lá atrás, fosse esse o milagroso acto para ladear o obnóxio cinismo que agora consome a carne. Até que espreita, tentador, o velho princípio cristão: não fazer aos outros aquilo que não gostaríamos que nos fizessem. Entreabre-se a promessa de jamais pisar o lodaçal do cinismo. Ou apenas o pretexto para liquidar a cicuta que arde nas veias depois de tragar a seiva onde nidificava, escondido, o cinismo alheio.
A máxima cristã é apenas um pretexto para turvar os efeitos dolorosos do cinismo que se abateu. Ela não consegue apagar as dores de quem sofre o cinismo praticado por outros. Inocula um anestésico que ilude as dores. A cicuta permanece viva dentro das veias. É essa cicuta que fermenta a urgência em destilar doses mais avantajadas de cinismo que há-de vitimar alguém nos dias que hão-de vir. A prova de que a máxima cristã é um engodo em que só os ingénuos sabem cair. Os outros, encardidos pelos efeitos devastadores do cinismo, entregam-se numa espiral sem freio, destilando mais e mais cinismo.
É uma defesa. E, ao mesmo tempo, uma carapaça para dizer por meias palavras aquilo que a frontalidade não consegue expressar. As investidas cínicas não são só a excitação da necessária higiene mental. São esquentadas pelo efeito de contágio, a convivência social, o testemunho de como tanto cinismo é vertido – e de como há no cinismo um paradoxal lado que mistura o belo e o horrendo, sentimentos que os patronos da moral decerto reprovariam a meias com a excitação da grandeza intelectual só ao alcance dos que conseguem iludir detrás de actos cínicos a troça alheia. E tem ainda o paradoxal efeito de nos colocar diante dos lados contrastantes quando praticamos e depois sofremos os efeitos do cinismo. De cada vez que exercitamos o cinismo há o conforto interior de quem consegue esconder detrás do pano as intenções e as palavras que não fervem na frontalidade, muitas vezes mascará-las com um insidioso humor. E de cada vez que o cinismo vem bater à nossa porta, o desconforto de quem se sente no papel de vítima.
São as curvas da vida: entre os altos e baixos da estrada que se faz serranias fora, umas vezes atingimos o cume de onde miramos os vales em pose sobranceira; outras vezes assentamos nas profundezas de um vale e sentimos a pequenez diante dos olhos de alguém que, do púlpito, planeou a emboscada cínica que nos aprisionou. Sobra a motivação do fair play, de saber suportar olimpicamente a sobranceria alheia.
O sabor oposto do cinismo é sentido quando alguém o pratica e depois é vitimado por uma dose letal de cinismo. Esse é outro problema do cinismo. A cicuta lançada contra os alvos do cinismo, a mesma cicuta que é tragada quando mais tarde a mesma pessoa acolhe no regaço as dores humilhantes do cinismo. É nessas alturas que o peito se abre à introspecção, interroga se não houve injustiça quando lá atrás fomos pródigos no exercício do cinismo letal. A interrogação só aparece quando ao sacerdote do cinismo cabe em sorte ser sua vítima às mãos de outros sacerdotes do cinismo.
A metodologia da dúvida resplandece nesses momentos de digressão pelo interior, em revisitação do passado em que tanto cinismo foi destilado. Não parece um exercício espontâneo. Poderá aparentar arrependimento, agora que em vez de fautor surge no papel de sacrificado no altar do cinismo alheio. Eis porque o arrependimento aparece tão distante da espontaneidade. É um oportunismo incendiado pelas dores lancinantes de quem se sente vitimado pelo cinismo alheio. Entre o desconforto de ser alvo do cinismo, assomam à superfície os episódios em que outros pereceram às nossas mãos ensanguentadas de implacável cinismo.
Apoquentado pelo incómodo do cinismo que veio bater à porta, falta discernimento para assumir de peito aberto o cinismo semeado pelas veredas do passado. Tudo se passa como se houvesse um apelo interior para expurgar do livro aberto o cinismo espalhado lá atrás, fosse esse o milagroso acto para ladear o obnóxio cinismo que agora consome a carne. Até que espreita, tentador, o velho princípio cristão: não fazer aos outros aquilo que não gostaríamos que nos fizessem. Entreabre-se a promessa de jamais pisar o lodaçal do cinismo. Ou apenas o pretexto para liquidar a cicuta que arde nas veias depois de tragar a seiva onde nidificava, escondido, o cinismo alheio.
A máxima cristã é apenas um pretexto para turvar os efeitos dolorosos do cinismo que se abateu. Ela não consegue apagar as dores de quem sofre o cinismo praticado por outros. Inocula um anestésico que ilude as dores. A cicuta permanece viva dentro das veias. É essa cicuta que fermenta a urgência em destilar doses mais avantajadas de cinismo que há-de vitimar alguém nos dias que hão-de vir. A prova de que a máxima cristã é um engodo em que só os ingénuos sabem cair. Os outros, encardidos pelos efeitos devastadores do cinismo, entregam-se numa espiral sem freio, destilando mais e mais cinismo.
É uma defesa. E, ao mesmo tempo, uma carapaça para dizer por meias palavras aquilo que a frontalidade não consegue expressar. As investidas cínicas não são só a excitação da necessária higiene mental. São esquentadas pelo efeito de contágio, a convivência social, o testemunho de como tanto cinismo é vertido – e de como há no cinismo um paradoxal lado que mistura o belo e o horrendo, sentimentos que os patronos da moral decerto reprovariam a meias com a excitação da grandeza intelectual só ao alcance dos que conseguem iludir detrás de actos cínicos a troça alheia. E tem ainda o paradoxal efeito de nos colocar diante dos lados contrastantes quando praticamos e depois sofremos os efeitos do cinismo. De cada vez que exercitamos o cinismo há o conforto interior de quem consegue esconder detrás do pano as intenções e as palavras que não fervem na frontalidade, muitas vezes mascará-las com um insidioso humor. E de cada vez que o cinismo vem bater à nossa porta, o desconforto de quem se sente no papel de vítima.
São as curvas da vida: entre os altos e baixos da estrada que se faz serranias fora, umas vezes atingimos o cume de onde miramos os vales em pose sobranceira; outras vezes assentamos nas profundezas de um vale e sentimos a pequenez diante dos olhos de alguém que, do púlpito, planeou a emboscada cínica que nos aprisionou. Sobra a motivação do fair play, de saber suportar olimpicamente a sobranceria alheia.
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