31.12.07

Sempre a procrastinar


Oh! Amanhã será um grande dia. Mas o que acontecerá amanhã?”, Victor Hugo.

Às vezes, a necessidade de trazer o tempo vivido para uma balança. Amiúde, a sensação de que passamos mais tempo abraçados a promessas que sempre ecoam um adiamento de nós mesmos. As intenções encerram a ambição desmedida, ou apenas a vontade de fazer as coisas diferentes. Em cada esboço inscrito no amanhã que algum dia há-de chegar, arquitectos sublimes de um futuro ideal. Há nesses projectos uma perfeição que sabemos ser impossível de alcançar. Todavia, insistimos nos belos planos que farão de nós pessoas mais completas, ou apenas pessoas diferentes. Indivíduos que conseguem diluir todos os fragmentos que deixam a consciência em sobressalto. Conseguiremos?

Estes passos trazem o sabor amargo do adiamento que se perpetua à medida que os votos de outrora são renovados, pela impossibilidade, pela incapacidade de serem vertidos em matéria palpável. Ao menos, a grandiloquência dos planos com assinatura dos mestres da procrastinação é uma inspiração do onírico. A fantasiosa agitação produz a seiva demente de aspirarmos ao que não conseguimos ser. A sensação de que passamos pela vida como um esboço, matéria falhada.

Uma dúvida inquietante soma-se: se o eterno adiamento de um eu diferente é confissão de derrota interior, ou a plácida entronização do eu fantasiado. É como se levitássemos numa dimensão intangível, tão intangível que permitiria caminhar sob as nuvens. Nos instantes em que saímos de nós mesmos e nos conseguimos ver de fora, ao ponto de se soltarem as forças que promovem os monumentais planos inscritos para ponteiros do relógio que hão-de chegar no seu momento, esperamos que o futuro tenha a sua palavra. Que esse tempo futuro seja confirmação dos nutridos projectos que idealizamos. E que depois ficamos à espera que aconteçam, parados, sem movermos um passo que fermente o zénite das promessas solenizadas.

Ao ser assim, é um logro que somos. O tempo futuro dirá as mentiras que insistimos em contar a nós mesmos. Nas ilusões que não chegam para apagar a matéria desconfortável que atormenta o sonhos. É que os sonhos a dormir são de uma cor diferente dos sonhos que construímos acordados. É destes sonhos – acordados – que vem o nutriente dos adiamentos perenes. Depois, os dois tipos de sonhos chocam de frente, como se fossem as vagas alterosas de um mar incendiado por tempestades assustadoras. O corpo, entregue às aleatórias ondas que o empurram de um lado para o outro, rendido à sua incapaz vontade.

É nessa altura que os olhos se entristecem. Pela resignação que vem da alta distância entre as gloriosas promessas e a aridez que se colhe. E pelo vento agreste que arremete contra o rosto, enrugando-o na demissão intuída de cada vez que entoam os ventos da procrastinação. É então que os lobisomens escondidos no mais recôndito do ser espreitam, ameaçadores, esbracejam a sua fúria e lavam as cores frondosas dos sonhos para deixar entrar os pesadelos plúmbeos que despertam o sono sobressaltado. E é então que o leito transpirado é testemunha da enorme pequenez do espírito. Da hipocrisia que o domina de cada vez que há adiamento para o que nunca há-de ser atingido.

No fim, o relógio que pauta o tempo depura a mentira que construímos dentro de nós. E como nem o adiamento se prolonga na imensidão do tempo, algures numa dobra dos ponteiros do relógio um algoz para acertar contas com a negação do que somos pela promessa de algum dia sermos algo diferente. O pior é que de cada vez que insistimos em olhar para o firmamento à espera que ele traga as pétalas douradas, não aprendemos com os erros cometidos lá atrás. As lições de outrora parecem esquecidas, elas que seriam a caução maior para não reproduzir a protelação.

Os adiamentos apenas consomem o sempre escasso e tão valioso tempo da vida que nos resta.

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