Errava pelas ruas. Sem saber que ruas palmilhava, sem saber se repetia as pedras das calçadas. Era como se não houvesse um mapa da cidade e ele percorresse, sem se cansar, as mesmas ruas. Sem perceber que regressava aos mesmos lugares. Era uma noite estranha, deserta. As pessoas evitavam a rua. Noite de uma placidez lúgubre. Enfeitada pelas luzes alusivas à quadra e tingida pelo frio que se insinuava nos ossos. Ensurdecedora no silêncio das ruas desertas. Notava-se movimento dentro das casas. Luzes no compartimento maior, a sala onde se juntavam as pessoas na consoada natalícia.
Para ele nada disso fazia sentido. Era uma ilha distante, cercada pelas pessoas que ocasionalmente se cruzavam nas ruas, nos edifícios que tinha que frequentar. Um rochedo frágil sozinho na paisagem. Desligado dos outros elementos da paisagem. Um monumento da solidão. As memórias eram apenas um lugar difuso onde recolhia fragmentos dispersos, o sarcófago do passado. Por mais que se esforçasse, nem se recordava se havia família. Os atropelos da vida deixaram feridas que continuavam abertas, cicatrizes que teimavam. Elas eram o seu mapa que não deixava fechar as páginas do doloroso, pesado livro de uma vida carregada de sacrifícios, pejada de dores insuportáveis, as derrotas perfilando-se umas atrás das outras. A sua única companhia era a dolorosa solidão a que se havia entregado.
Nem o calendário importava. Eram os dias que iam passando, repetidos, monótonos, uns atrás dos outros. Encurtando o tempo que faltava para que a contagem dos dias enfim cessasse. Desistira das coisas belas, que em tempos as houve. Agora era tudo uma monótona repetição dos dias, a rotina cansativa, as horas de sono que eram o seu refúgio da claridade incomodativa. As folhas do calendário estavam inertes há muito tempo. A poeira em cima do calendário, sintoma da renúncia. Aquela folha do calendário sinalizava o dia em que desistira. Já não importava que dia era, nem as efemérides que reclamam atenção do espírito e consagração de algo.
Era assim com o natal: nem sabia que havia chegado o dia da consoada. Os dias já não eram a contagem numérica do calendário. Apenas a sucessão rotineira de segunda a domingo e outra vez de segunda a domingo. Só na véspera de natal, ao notar a deserção das ruas, percebia que a folha do calendário (se houvesse sido virada) anunciava o vigésimo quarto dia de Dezembro. E vagueava sozinho pelas ruas entregues a si mesmas. Apascentava a sua solidão, escondendo-se do natal celebrado nas salas recheadas de iguarias e de crianças excitadas no prenúncio da visita do fictício pai natal.
Estranhamente, era porventura o dia em que solidão menos lhe doía. Entre as memórias difusas, cada vez mais obscurecidas, o natal era palavra vã. Nunca tivera sentido religioso. Deixara de ser a celebrada festa da família a partir do momento em que das memórias se diluiu a recordação de uma família. Portanto, não havia nostalgia: só poderia haver nostalgia se houvesse lugar ocupado pelas memórias, regressando aos tempos de outrora em que comungava a felicidade com alguém que se dissesse seu ente querido. O exílio interior era o obstáculo maior, a reserva mental que limpava das memórias esses tempos – que não conseguia certificar que sequer tivessem acontecido. Pelo menos, era mais fácil acomodar aquilo que a outros seria uma insuportável dor: um natal mergulhado na mais profunda solidão, porque as convenções ditaram que no natal há o imperativo de comungar a felicidade forçada com outros.
Na noite da véspera de natal percorria à exaustão as ruas da cidade. Sem se cansar. Sentia-se enfeitiçado pelas ruas na sua própria solidão. Elas, desertas de gente, faziam-lhe a companhia de que afinal carecia. As suas árvores, as estátuas, as paredes frias das casas, as montras refulgentes de adereços alusivos, as fontes vertendo a água de sempre, o pavimento das ruas que não ecoava os rodados dos automóveis que não passavam. A antítese do postal ilustrado do natal das pessoas que se fazia dentro das casas. O dele, que só a ausência das ruas soava, era a solidão comungada com as ruas também elas domadas pela solidão das pessoas ausentes. E não havia lamentações. Nem nostalgia, que às vezes o mergulhava em interrogações que queriam saber se outrora tinha sido diferente com ele: como tantas pessoas, um natal normal.
1 comentário:
a solidão é danadinha não é?
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