Foi lamentável a valsa dançada entre europeus e vários ditadores da pior espécie vindos de África. Prova de que a teoria política dos catrapázios bem pensantes da moral europeia não passa de retórica. A juntar a outro equívoco: a metodologia, a política escolhida para negociar com os países africanos. Mais do mesmo: ajuda ao desenvolvimento. Decifrando a linguagem, dinheiro empacotado pela União Europeia para os países africanos.
Aos mais desatentos – e àqueles que acreditam na ladainha de Bono – será chocante dizer que o envio de dinheiro para estes países faz-lhes mal. Poderão pensar: se as assimetrias de desenvolvimento são tão acentuadas, e se alguns países europeus têm responsabilidades pelo muito tempo de colonização errada, é exigível que os ajudem a sair do subdesenvolvimento. A ajuda financeira é o melhor remédio – continuarão a pensar. Até estarão tentados a concordar com o facínora Khadafi quando veio exigir, com o despautério do costume, indemnizações aos países que outrora foram colonizadores. Se não resvalarem para esta imbecilidade, ao menos estarão convencidos que a ajuda aos países africanos exige generosos cheques enviados pelos europeus.
Uma digressão pelo passado fará luz sobre o equívoco da ajuda ao desenvolvimento que passa pelas doações de dinheiro. Primeira observação: estes países pouco progrediram na escala do desenvolvimento. É verdade que alguns conseguem taxas de crescimento económico que são atraentes para quem vê neles excelentes oportunidades de negócio. Só que os teóricos do desenvolvimento não se cansam de explicar que crescimento é uma coisa e desenvolvimento é outra. Por outras palavras, pode haver elevado crescimento sem se repercutir em desenvolvimento – e isto abunda em África. Segunda constatação: a miséria continua a sobressair, a fome, a insalubridade, as doenças que não regridem, a esperança de vida que continua, em muitos casos, a ser inferior a quarenta anos. Mas há elites que enriqueceram de forma obscena. Não é por acaso que alguns politólogos recorrem ao termo “cleptocracia” para caracterizar o regime político de muitos países africanos.
Estas observações são a prova de que o dinheiro enviado tem feito muito bem às elites que enriquecem enquanto as populações definham na pobreza tão obscena quanto a obscenidade das suas fortunas que acamam em off-shores e contas bancárias na Suíça. Podem alguns contrapor que o dinheiro que a União Europeia envia para os países africanos está associado a projectos de desenvolvimento específicos, com acompanhamento e tudo. Só que esse dinheiro permite aos países africanos uma almofada para usarem os respectivos orçamentos para outras finalidades – palácios sumptuosos, exércitos armados até aos dentes, luxos ao serviço dos governantes. Não fosse a generosidade financeira dos europeus e não haveria o cortejo de riqueza obscena dos líderes africanos. Curiosamente, algumas esquerdas que se acham penhoras da “boa consciência” mundial, tão preocupadas com a injustiça na repartição do rendimento dos países capitalistas, silenciam-se diante da iniquidade mais acentuada que se reproduz em países africanos. Com a bênção dos europeus e dos cheques que enviam para terras africanas.
Há outro inconveniente na ajuda ao desenvolvimento que depende destes cheques. Os facínoras que dançaram a valsa com os europeus perpetuam-se no poder. Que venha a União Europeia proclamar a universalidade dos direitos humanos, que venha até condicionar a atribuição de dinheiro ao respeito por estes direitos; os déspotas da pior espécie governam com mão de ferro países que se banqueteiam na generosidade financeira dos europeus. E assim dotam-se de um balão de oxigénio que os eterniza no poder, com mais opressão, mais banhos de sangue – tudo com a chancela dos europeus, que proclamam o contrário do que acabam por financiar, para expiação dos pecados da colonização.
Em tudo isto, hipocrisia dos europeus. Preferem enviar os cheques para África, quando a melhor ajuda que poderiam dar aos povos africanos (sublinho: aos povos; não às elites que os governam) seria a abertura do mercado europeu às exportações agrícolas dos africanos. O obstáculo é poderoso: os lobbies dos agricultores europeus (com os franceses à cabeça). A União Europeia prefere subsidiar as vacas com verbas superiores ao PIB per capita da maioria dos países africanos. Pelo caminho, não abre uma caixa de Pandora (a resistência dos agricultores habituados à generosidade da política agrícola da União Europeia). E, também pelo caminho, espaço para a ajuda ao desenvolvimento tecer as teias do comprazimento dos políticos que têm na intervenção o seu oxigénio: por um lado, o agradecimento dos países que recebem o cheque - fica sempre bem e afaga o ego dos falsos generosos; por outro lado, a imagem filantrópica que apazigua a consciência colectiva dos países que andaram pelo descaminho da colonização que se limitou a exaurir recursos nas colónias – coisa que tem a vantagem de dar votos.
Tenho a impressão que esta metodologia, esta política de parceria com África, é um tremendo equívoco. Confúcio explica-o melhor que ninguém quando ensina que não se deve dar o peixe ao pobre; antes, ensiná-lo a pescar.
1 comentário:
Este texto devia ter sido lido na sessão de abertura da Cimeira UE-UA:
Políticas hipócritas, prioridades enviesadas, pseudo-responsabilidade moral e mjuito show-off.
Enviar um comentário