É reconfortante saber que há gente que puxa os galões à imaginação, ensaboando a retórica retorcida para justificar o que é aparentemente injustificável. Valha-nos a arte da retórica típica de advogado de meia-tigela, capaz de defender hoje uma coisa e amanhã o seu contrário com a maior naturalidade e sem pingo de vergonha; a retórica deste jaez não é exclusiva de advogados ilusionistas da palavra – há cada vez mais gente a tornar-se exímia na arte.
Há dias vinha no Público uma reportagem sobre a claque da agremiação regional que tanto brado tem dado por causa do envolvimento de destacados membros em actos de banditismo organizado na noite portuense. Louve-se o jornal, juntando-se a outros órgãos de comunicação social e aos habituais adeptos guiados pela canina fidelidade clubista: chama-se a isto o espírito do contraditório. Para contrabalançar as opiniões escorreitas que apontaram o dedo à brutal criminalidade que espalha medo na noite portuense, de permeio com a identificação de alguns suspeitos com a diligente filiação na claque daquela agremiação regional.
Na reportagem havia testemunhos que procuravam expurgar a claque daquelas excrescências que deram com os costados nos calabouços da polícia judiciária do Porto. Como é habitual, um antropólogo que fez mestrado e está a ultimar doutoramento dissecando a referida claque veio defender a sua dama (o que permite questionar da imparcialidade de que esta “ciência” se reveste). Depois havia depoimentos de ex-líderes da claque e da consorte do actual líder – um rapaz que ostenta sinais de riqueza que ninguém percebe a origem. A senhora começava por negar o que é por demais conhecido: que a rapaziada dos super dragões espalha a confusão em áreas de serviço nas auto-estradas quando acompanha a equipa em viagens a estádios alheios. Logo de seguida, como que confessando a patranha, a senhora sentenciou o seguinte: “roubo é o preço praticado nas áreas de serviço”.
Chama-se a isto justiça divina, interpretada pelos justiceiros mor, a rapaziada dos super dragões. Dir-se-ia que têm um dom especial para medir o que é justo e injusto. Estão capacitados para tal função, acima do cidadão comum. Fazem as vezes de barómetro da justiça. Andam atentos às manifestações de injustiça que subtraem escandalosamente dinheiro ao povo. O fantástico é chegar à conclusão que são os Robin dos Bosques da era moderna, adaptados à idiossincrasia nacional. Não, não é violência gratuita a que semeiam quando o autocarro que os transporta regressa à cidade invicta a faz uma paragem numa área de serviço. É justiça divina: quem aos ricos rouba não pode ser acusado de roubo. Um advogado torcendo argumentos ousaria avançar esta ideia. Para aquela senhora, as vítimas do roubo é que deviam sentar o rabo no banco dos réus!
Porventura a senhora – e os que assim pensam – terá lido muito Marx, Lenine, Trotsky, Rosa do Luxemburgo. Ou não: o mais certo é não ter passado da quarta classe, não chegando ao conhecimento dos teóricos que dariam beneplácito à teoria ensaiada em defesa dos energúmenos que roubam pelo prazer de roubar e não como arautos da tal justiça divina que é neles ausente. Isto faz-me lembrar outros paladinos da teoria das circunstâncias atenuantes como esteio que inverte o lugar das vítimas e dos criminosos. Há dias o senador maior da república, Mário Soares, passeando-se na companhia de uma jornalista de cabelo oxigenado numa deambulação televisiva que espalha a sua imensa sabedoria, proferiu a seguinte sentença: “o ocidente tem que desarmar os terroristas islâmicos com bondade”.
Um perito em poética, acaso estivesse a decifrar as palavras do senador – e acaso tivessem elas alguma ressonância poética – sentenciaria acerca daquela sentença: “ditirâmbico”. Do idoso senador estamos habituados a consumir os maiores dislates sem que alguém ouse questioná-lo pelos disparates pronunciados. Não é surpresa que as suas palavras ressoem à defesa da quadratura do círculo. Soares parece admitir, a custo, o estatuto de “terroristas”. Só não soube explicar como se desarma um fundamentalista islâmico, não muito distante de um sociopata, usando “bondade”.
No império do relativismo intelectual, tudo é defensável. Não há aqui o menor laivo de cinismo. Eu sou adepto do relativismo. Que mais não seja para me rir com certas teorias insólitas que enxameiam o espaço público e reúnem uma coorte de fiéis que nem sequer têm tempo para se interrogar acerca dos pressupostos da dita teorização. Repito: têm direito à existência, essas teorias. Da minha parte, preenchem a paisagem humorística.
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