14.12.07

O natal só das crianças


A incumbência de escrever uma frase alusiva ao natal para a minha filha levar para o colégio. Andei três dias a adiar a tarefa, ou porque não havia maneira de encontrar a inspiração, ou pela dificuldade em descobrir uma frase que fizesse a síntese do que é o natal. Tive que mudar o método. No deserto de ideias acerca do significado pessoal do natal, esforcei-me por recuar no tempo e indagar ao passado o que sentia em criança quando o natal se fazia anunciar. Por hoje, tenho outras referências que ajudam à tarefa: ver como as crianças lidam com o natal.

E assim se fez luz: uma frase que à partida não podia incorporar os lugares-comuns que desfilam, com profusão, a propósito do natal. Uma frase que contivesse o espírito das crianças diante do natal. Daí que tenha descoberto, pelos olhos alheios, que “o natal perfuma as estrelas com as cores da felicidade”. Pelos olhos das crianças que festejam o natal com o êxtase de quem fica à espera da descida das prendas pela estreiteza da chaminé. Na sua inocência, nunca se questionam que os embrulhos chegam imaculados, refulgentes, sem o menor vestígio da fuligem acumulada nas paredes da chaminé.

O envelhecimento instala a monotonia dos preceitos que se repetem na volta habitual do calendário. É assim com o natal. Uma certa melancolia. Inexplicável melancolia. Só rompida com a revisitação de infantis natais de outrora, através da excitação das crianças que entraram na minha vida. Um sentimento ambíguo: entre a nostalgia inexplicável que esconde uma certa tristeza, o cansaço de natais que se repetem com os rituais de sempre; e a felicidade que jorra das crianças nos dias que antecedem o natal e naqueles momentos tão esperados por elas, quando por fim chega a vez de desembrulharem os presentes.

Já sei que há muita gente, empenhada em combater os malefícios do consumismo, que verbera este tipo de natal a que as crianças se entregam. Sei que há maneiras alternativas de educar o natal às crianças. Páginas inteiras escritas a censurar a enxurrada de prendas que ao fim de meia dúzia de dias são remetidas ao esquecimento pelas crianças mimadas, enquanto pelo mundo fora tantas crianças têm uma vida preenchida por carências que nem sequer fazem sentido por cá. Que me seja perdoado o devaneio individualista: é que sou penhor da felicidade das crianças que me são queridas. É a sua felicidade que me compraz. E sim, é verdade que há despropósito na educação – diria, colectiva (já me explico) – que ensina os predicados materialistas do natal. O que fazer para contrariar esses excessos? Roubar a felicidade às crianças?

(Digo “educação colectiva” porque há um efeito de contágio que os pais podem pouco fazer para combater. Os filhos não vivem isolados no mundo. Convivem com outras crianças. Entre a vigorosa maré materialista que varre as crianças cada vez mais mimadas, é uma insensatez meter o remo em sentido contrário ao da vigorosa corrente. Só conseguirá ostracizar a criança, noutro descaminho da sua felicidade. É resignação, decerto. Pelo bem-estar da criança.)

Se há virtude no natal habitado por crianças é a nostalgia que elas semeiam em mim. E os rostos delas, espelhos de felicidade incontida – que interessa se nutrida pelo “hediondo consumismo”, pois a felicidade é para ser sagrada, sem curar de saber onde ela radica. As virgens pudicas que espalham verdades insofismáveis, soltando discursos inflamados contra o consumismo e o materialismo que se apodera do natal, não passam de personagens que querem roubar a felicidade que as estrelas espalham nos rostos das crianças. Haviam de ser presos por esse crime insuportável. E deixar as crianças sentir toda a felicidade – por materialista que seja – do natal. Os que surgem como obstáculos à felicidade delas, deviam ser deportados para lodosos terrenos onde a sua desdita pessoal pudesse ser apascentada.

Por hoje, retomo algum gosto no natal. Simplesmente pela ansiedade que vai consumindo as crianças nos dias que contam até chegar a véspera de natal, pela expressão de felicidade que delas brota, um manancial que me inunda com um preenchimento interior indizível. Os olhos das crianças são os meus olhos quando o natal aparece no calendário. É pelos olhos delas que sinto a felicidade que irradia. E se elas encontram as estrelas coloridas com os tons radiosos da felicidade, eu vejo nos rostos e nos olhos das crianças a minha felicidade natalícia.

O natal, que aparenta pertencer só das crianças, também é oferenda aos adultos pela expressão deslumbrada vertida nos rostos das crianças.

1 comentário:

Unknown disse...

muito bom!! parabens.