Naquele lugar as cores eram baças. Na sua triste tonalidade desmaiada, parecia que todas as coisas se esvaiam na sua fragilidade, tão perto de serem levadas pela fúria dos elementos a contracenarem com as desprotegidas coisas. Os vendavais eram o agreste elemento que semeava a lividez das cores. As pessoas, todas as pessoas, caminhavam lentas pelas ruas, de rosto fechado, embebidas numa palidez confrangedora. Pareciam autómatos, inertes de sensações.
Contudo, havia nas cores desmaiadas uma beleza indizível, apenas uma beleza que se sentia a gotejar. Havia ali rejeição das cores garridas. Um metódico hino à discreta forma de ser. É que as garridas cores feriam a vista. Era como se fossem um farol incandescente, que de tanta e intensa luz irradiar, só conseguia anestesiar as pessoas. Logo, um farol incendiário. Parecia que naquele lugar as pessoas há muito tinham aprendido a lição: as cores cintilantes, na sua embriaguez, são um terrível engodo que distrai as gentes para as supérfluas coisas da existência. A coreografia que é viver dispensa o folclore das cores engalanadas.
Até à noite só havia meia-luz. A suave iluminação misturava-se com a mal disfarçada penumbra que encobria o horizonte. À distância, tudo o que a vista alcançava eram vultos – vultos das pessoas em redor, vultos das coisas nas suas formas distorcidas. Pela noite, as cores embaciadas retiravam mais nitidez às coisas, as cores ainda mais desmaiadas que à luz do dia. Era como se estivesse por dentro de um filme a preto e branco, tão discretas as cores entarameladas na escuridão nocturna. E, no entanto, havia um encantamento que dispensava explicação. Apenas a constatação do encantamento em redor. Pelo insólito das cores a que os olhos estavam desabituados.
Os escassos dias naquele lugar foram consumidos com a coreografia das cores desmaiadas na sua inusitada expressão. Nos escassos dias, os sentidos pareciam anestesiados pelas mortiças cores que tomavam conta das coisas e das pessoas. O corpo entregava-se ao exercício balsâmico, como se as cores desfalecidas fossem terapia para domar os sentidos dantes desenfreados. Até a atmosfera se compunha a preceito, a névoa matinal que descia numa fina camada até repousar no rio que fazia do vale o seu leito. A névoa que lentamente se acamava nas águas mansas do rio, demorando-se nelas enquanto não se esbatia no sol que trepava pelos contrafortes da manhã.
As ruas estreitas, as casas feitas com o granito secular, as pedras da desconfortável calçada; o cenário que recebia as cores discretas que dominavam aquele lugar. Dir-se-ia, uma labareda de melancolia vertida nas desmaiadas cores que aquele lugar escolhera como divisa. Porém, a apreciação demorada desfazia a errada percepção. Sobrepunha-se a placidez daquele lugar, onde até o tempo parecia fluir com uma lentidão que desmentia a marcha dos ponteiros dos relógios. Às vezes, parecia que o tempo se havia eclipsado detrás das pálidas cores que compunham a paisagem. Essa era a sua beleza, imersa na sensação da intemporalidade.
Ao fim dos escassos dias, o corpo sentia uma irreprimível pulsão para abandonar aquele lugar. Uma paradoxal sensação: acertado o passo com o sortilégio do lugar e das suas mortiças cores, o apelo para partir em demanda de outros sítios, dos desconhecidos sítios por desbravar. Não fosse a beleza das desmaiadas cores consumir-se no cansaço da acomodação. Não fosse a habituação a elas sinalizar o fim do encantamento daquele lugar e das suas cores desfalecidas.
Já errava o corpo, sem destino marcado, e ainda vogavam as memórias daquele lugar que entronizava as cores desmaiadas. Por momentos, sentia o chamamento para regressar às ruas labirínticas onde todas as pessoas trajavam o rosto fechado. Por momentos, todos os lugares entretanto visitados pareciam um trono de aridez, mesmo aqueles sagrados pelos roteiros do turismo, notabilizados pelo desaguar diário de hordas de turistas em demanda dos encantos oficializados. Sentia ser aquele o ser idílico lugar. Resistiu ao chamamento, porém. Temia que no retorno se diluísse a indizível beleza que o extasiara da outra vez.
Há lugares que só se visitam uma vez. Por mais que as memórias convoquem o regresso, a resistência ao retorno é a terapêutica decisão que impede a banalização do encantamento.
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