28.11.08

Vilões sedutores


Pela cidade estão espalhados outdoors que anunciam a "Villain Collection" – uma nova série de relógios de uma conhecida marca. A emprestar a aura de sedutora criminalidade, a imagem de um rufia em pose ameaçadora. Como estou em crer que os publicitários não dão ponto sem nó, pondo cuidado nos estudos de mercado que antecedem uma campanha publicitária, isto sinaliza a predisposição de potenciais consumidores para se deixar levar pelas cantilenas de sofisticados meliantes.


Não é de agora, a atracção por uma casta de vilões sedutores. Não se trata de rufias comuns. Esses, imersos na indiferenciada ralé, merecem o desprezo da populaça. Os adorados são os ladrões sofisticados, que usam a inteligência acima da média para golpes brilhantes. Muitas vezes, trata-se de gente que engana até profissionais polícias habituados a lidar com todo o tipo de criminalidade. Gente que congemina pacientemente os golpes que arrombam o baú que se julgava protegido a sete chaves. O género é pródigo em páginas e páginas de livros, em filmologia abundante.


Ao contrário do convencionado na lírica cinematografia, em que os "bons" levam sempre de vencida os "maus" – numa ingénua visão que não condiz com o mundo que existe –, os sedutores vilões são os heróis do enredo. Têm uma aura de romantismo que arrebata um numeroso exército de seguidores. O que leva a interrogar se não há por aí um também numeroso grupo de potenciais criminosos, que só o não é porque os dotes intelectuais não chegam para arquitectar os fabulosos e infalíveis (ou quase) planos que gizam o golpe. O que também leva a interrogar por onde andam os valores, desmentindo aqueles que ainda insistem na pedagógica a acertada moral, sem sentido a missão evangelizadora que teimam em aspergir sobre incautos e espertalhões.


A imagética do rufia sedutor vem de braço dado com o esplendor dos meios sociais onde repousam os holofotes. Esses rufias têm uma vida passada por luxos diversos, que a sucessão de conseguidos golpes alimenta o ócio e o ninho de luxos. É o que passa diante dos olhos do leitor, diante dos olhos do cinéfilo, quando lê um livro do género, quando assiste a um filme que torna ainda mais reais as sensações da vilania na sua quintessência. São os sonhos de muita gente a falar através das páginas dos livros, das telas dos cinemas: a vida faustosa e, se possível, obtida por meios fáceis. O romantismo dos vilões de primeira água interioriza esses sonhos.


Também conquistam as simpatias de muita gente os vilões que fazem justiça pelas suas próprias mãos. Aqueles que roubam aos ricos e distribuem aos pobres, a versão moderna do Robin dos Bosques, ou do Zé do Telhado, permanecem vivos no imaginário popular. O povo gosta dos justiceiros que, ao arrepio da justiça instituída, heroicamente são fautores da justiça pretendida pelo povo. Se cometem crimes, isso não interessa. Há fins que justificam os meios. É o mesmo povo que faz esperas ruidosas à porta do tribunal onde é julgado alguém acusado de hediondos crimes. O mesmo bravo povo que gostava de fazer linchamentos populares, caucionando a justiça na sua forma pura – já educados para o dogma que ensina que a soberania reside no povo, estranhando que os juízes não sejam eleitos. A coragem, diria a bravura, de muitos a baterem num indefeso: a imagem fiel do cretinismo popular, ou a prova de que não somos tão civilização como é apregoado.


Não tenho a certeza se as duas coisas estão relacionadas – a sedução pelos vilões que são heróis, dos bons vilões, e a tendência para defender a justiça popular. Lá no fundo, há cada vez mais gente a condoer-se pelas injustiças de que é testemunha. As fortunas que nascem de um buraco negro. A corrupção galopante que distorce méritos e leva os fracos e incompetentes a vingarem na fétida espuma de onde emergem. Negócios esconsos, ganância cega, atropelos a quem apareça pela frente, sumiços ditados a obstinados adversários. Quase sempre sem o braço da justiça lá chegar. Uma doença que se espalha, imparável, acometendo sobre mais e mais gente. A adoração de vilões sedutores é muito a atracção por justiceiros. Ou o olho por olho, dente por dente tão querido da populaça.


Admito que a "Villain Collection" daquela marca de relógios vai ter um sucesso estrondoso.

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