Entregar o corpo às balas, dizem com indisfarçável orgulho. A vaidade de serem carne para canhão em causas de que são peões. Todas as causas com os seus idiotas úteis.
É pueril o entusiasmo dos que concebem morrer por algo, ou por outros, ou por uma causa bem identificada. Acreditam na desmaterialização do ser. Em delirantes exercícios prospectivos em que ensaiam o próprio epitáfio, imaginam-se heróis de muitos, a morte a levar essa heroicidade que se consome num instante. O heroísmo lacrado com eles, na pedra tumular. A cada um o direito inalienável de fazer com a vida o que bem entender, que fique registado. Contra isso, apenas a pessoal incapacidade para ser entregue em sacrifício num altar onde os outros se deleitam.
Dirão os projectados auto-heróis: o consolo maior de se saber elogiado na despedida da vida, com a elegia prolongada por tempos imemoriais, a cada dia que alguém vier recordar o acto de desapego individual de quem se sacrificou em nome de muitos. O desassombro da generosidade atinge aí o seu auge. Há maneira maior de provar o desprendimento de si?
Lirismo inconsequente, apenas, diria. A antecipação do epitáfio debruado em homéricos poemas não passa de um sonâmbulo narcisismo. Não acredito em tanto desprendimento. A generosidade em nome dos outros, mesmo quando vem selada com a definitiva morte, mergulha nas masmorras do ensimesmamento. É a sede da glória futura, eterna até. O acto tresloucado de quem se atira de peito feito abraçando a granada que se despedaça no estilhaçado corpo é ainda motivo para glorificação. De todos os sacerdotes que, pelo seu punho, poetizam o feito. À sua maneira arregimentam o potencial exército de heróis vindouros. Daqueles que ficam inebriados pela detalhada descrição da fátua glória, de permeio com pormenores fantasiados que exageram a proeza.
E, no entanto, olho para as exaltadas descrições das façanhas debruadas pelo ouro da bravura e não consigo extrair uma gota de entusiasmo sequer. Todos os peões que aceitam, impassíveis, a condição de heróis em salvação alheia são figurantes que aspiram a um papel maior. Querem deixar de ser figurantes, apenas um a mais na anónima massa que pastoreia os indiferenciados campos da existência. A prova do turvado narcisismo, ficarem conhecidos na morte pelo acto derradeiro que lhes decepou a vida. Tão épicos e, contudo, imersos uma aviltante ofensa ao louvor maior que é a vida.
O ocaso, como o que todos os dias leva o sol para além do horizonte, é inspiração de arrebatadas composições poéticas. Embriagante a beleza das cores que se transfiguram com os minutos no seu esvaimento, o ingrediente das odes que empunham a veia épica do sol que se esconde. Mas do sol nunca derrotado, logo umas horas depois revigorado na rotineira sucessão dos dias. Os que concebem entregar o peito às balas usam a metáfora do ocaso do sol como inspiração. Ficam à espera que escrevinhadores tomem o seu heroísmo como fonte onde a poética inspiração encontra nutriente. Babam-se, antes do tempo, a imaginar o epitáfio que os letrados oferecem em sagração da epopeia pessoal.
Esta é uma pérfida indústria. Fazer arte com a celebração da morte, nem que seja da morte enfeitada em épicas vestes, é indecoroso. Só deveria haver arte na celebração da entusiasmante existência. E nem que um persistente eco trine uma razão insondável, nas loas ao desapego do herói que, com a sua morte, salvou tantas vidas, não entendo como disso se faz celebração. Sobra apenas um herói que prefere ficar recordado nos livros das memórias pelo desvairado acto. Deixou de ser figurante logo quando se despedia da vida. Porventura, uma existência monótona. E uma existência sem qualquer laivo de orgulho. Estes heróis entram para a eternidade não pelo que souberam fazer em vida, apenas pelo derradeiro acto que terminou com a sua existência.
Todos os fins são tristes. Mesmo os ocasos que se julgam épicos.
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