Dizias: todo o tempo de uma vida é a contrafacção do que somos. Julgamos ser e, no fim da linha, a imagem projectada de dentro para fora, que depois se amplifica na cortina de espelhos, é uma imagem que regressa distorcida. Andamos o tempo todo em demandas falazes. Quando damos conta da falácia do pretérito, novo desengano: a certeza que chegou o tempo de ser diferente faz coincidir a descoberta com o código genético do eu, um tremendo erro de perspectiva. A renovação da existência, apenas o erro reiterado.
E dizias: afinal não vivemos. A existência gasta-se nas inúteis demandas que se agigantam no papel de magníficos projectos. A vida consome-se em fragmentos nebulosos, um amontoado de ingredientes dispersos, um cozinhado intragável, sem sentido. As sombrias máscaras que detectas por todo o lado, o sinal excruciante do terrível engodo da existência. O teu pessimismo traz a marca fatal: apenas afloramos a vida que nos pertence. Arrastamos um erro do tamanho do mundo. Quem julgar que vive, que se desengane: apenas sobrevive.
Contraponho: em pessimismo, levas a palma aos demónios apoquentados pelo cepticismo ímpar. Exageras no diagnóstico? As entranhas calcinadas por um punhado de malfeitorias alheias, por sua vez nutriente da acidez desalmada? Ou até a ilusão da própria teoria: quem te diz que o jogo de luzes que ofusca a real existência não é depurado por outra cortina que subtrai discernimento?
Implacável no diagnóstico, embarcas num inútil braço de ferro para fazer valer o que já determinaste ser a razão. Ao menos, a tua razão. Homérica razão que não admite interrogações que lhe façam vacilar os alicerces. Não admites que a tua tese seja a ilusão da ilusão. A teimosia não te deixa capaz de distinguir os passos irracionais. Mas teimas: que só os desassombrados conseguem contemplar a mera sobrevivência de todos os mortais, eles todos anestesiados pela existência parcial, errando pelos caminhos paralelos onde decorrem as vidas. O desassombro não admite que em cima da conveniente teoria venha outra contar que a colectiva alucinação escapa a uma anestesia maior que a deixa reduzida a escombros. Por cima da ilusão reivindicada outra virá, com letal capacidade destrutiva.
Pergunto-te pelas coisas belas, se existem ou são uma farsa, o produto da imaginação que deixa a existência em intransigente analgesia. Pergunto-te pela bondade, nem que seja a bondade compassada pelo interesse, ditada pelo apaziguamento dos seus fautores. Dizes que a cortina de espelhos que deforma o lugar e o modo em que somos é uma tenaz impiedosa, a substância que adultera coisas e pessoas e sentimentos. Nada é genuíno. Por entre o caos reinante, impossível saber onde está a beleza, a bondade, onde estão as pessoas que merecem encantamento. Irredutível, questionas até a existência da beleza, da bondade, de pessoas ungidas pelo encantamento.
Afogueado, dilacerado pelas dores existenciais que te incendeiam as veias, sentencias: a vida é uma toleima. Um desperdício de tempo. Uma patranha que nos servem à nascença e só se recompõe com a morte. Imperturbável, questionas a existência da humanidade. Todas as pessoas e uma singular contrafacção de gente, apenas uma indiferenciada turba amansada por sacerdotes maiores que soerguem a cabeça no firmamento para apascentarem a obediente turba. Lamentas, em jeito de pergunta: é isto, viver? De mim, nem todas as consumições juntas deixam espaço à resposta. Enquanto olhavas, impassível, com o olhar gelidamente fixado na ausência do distante horizonte, deixei-te o meu silêncio. Não era concordância lacrada pelo silêncio. A pergunta, na sua aleivosia, não carecia resposta.
Aqueles instantes de silêncio pareciam enegrecidos pela eternidade. Não havia palavras que merecessem ser ditas. A interrogação ficou a esvoaçar, tal como um balão levitando no ar despojado de vento. Os pensamentos vogaram para lugar diferente, em homenagem à pessoal sagração da vida que merece ser exaurida em cada segundo que durar. Vi-te cabisbaixo, sem coragem para responder à pergunta que já continha em si a resposta. Pressenti os olhos marejados, inundados por uma imensa tristeza. E, contudo, uma irresistível paralisia apoderou-se dos músculos, da voz. Manietado por uma sensação de impotência, seguro que palavras algumas, gesto algum, seriam capazes de te retirar da letargia em que te havias afundado. Covardia, quem sabe, mas a covardia alimentada pelo insultuoso desperdício de vida contido naquela letal interrogação.
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