25.11.08

A realidade, somos nós que a fabricamos


Revejo Fátima Felgueiras, à saída do tribunal que ditou a sentença na maratona que foi o julgamento por uma mão cheia de crimes de que era acusada. Revejo-a, exultante, triunfante até, a protestar a paradoxal ilibação de quem acabava de ser condenada a pena de prisão suspensa de três anos e três meses. Percebo o contentamento: a senhora livrou-se do crime maior que pesava sobre si, as suspeitas de corrupção. A serem provadas, seria quase insólito no panorama pátrio – que isto de levar ao fim julgamentos de gente acusada de corrupção é uma odisseia que termina com a exculpação do acusado, que ainda sai triunfante, nos ombros dos apaniguados, e muito ofendido pela acusação infundada.


Revejo a autarca de Felgueiras e orar com pujança. Soltou-se-lhe a língua, por fim, ela que se reservara a um monástico silêncio durante o julgamento. Ali estava, de peito feito, um orgulho ímpar, a mostrar a quem a quis escutar – detractores e fiéis seguidores – que a honra estava intacta e assim tinha sido sancionado pelo tribunal. Não reprimiu a habitual pesporrência dos que não foram instruídos para degustar olimpicamente as pessoais vitórias. Havia raiva incontida naquelas palavras. Dirão os mais condescendentes: pudera, provada em tribunal a sua inocência, sobrava o travo amargo de todos estes anos que a senhora carregou o opróbrio dos crimes de que era acusada.


O problema é que a senhora de Felgueiras destilava a bazófia diante das câmaras sendo arquitecta da sua própria realidade. As notícias acabavam de reproduzir a sentença do tribunal: ilibada de quase todos os crimes, excepto um punhado deles, crimes menos graves, é certo (abuso de poder e peculato de uso) – mas a senhora não era ilibada de todos os crimes. O tribunal sentenciou: pena de prisão de três anos e três meses. Contudo, pena suspensa. Por artes das habituais e soturnas "manobras processuais", de braço dado com um novo código não-sei-de-quê mais generoso para gente condenada a pena de prisão, a senhora teve a sorte de ver a condenação remetida à condição de "pena suspensa".


No conto de fadas que a dona Felgueiras contava, de permeio com a raiva que espumava, esqueceu-se de dizer aos néscios que não tinha sido totalmente ilibada. Aquele "totalmente" faz a diferença. A diferença de quem distorce a realidade à medida das suas conveniências. Estará habituada, treinada na escola dos medíocres políticos que são a nota dominante do regime. Só que nem à força de tanto forjar a realidade a senhora consegue transtorná-la. A sentença do tribunal, quando se converter em sentença definitiva (depois de julgados os recursos para os tribunais superiores), há-de deixar uma desagradável impressão digital no registo criminal da senhora. Da sentença de prisão, apesar de suspensa, não se há-de livrar. Cadastrada ficará, a donzela.


Continuam a passar na memória as imagens da oratória inflamada e triunfante da senhora à saída do tribunal lá da terra. Uma mentira contada à exaustão transforma-se em verdade. A senhora de Felgueiras parecia começar a pré-campanha eleitoral para as eleições autárquicas daqui a um ano, ali à porta do tribunal, um exotismo latino-americano que terá trazido de outras andanças. A pose pomposa à porta do tribunal servia para o chamamento dos fiéis seguidores que a reelegeram mesmo depois da vergonhosa fuga que empreendera para o Brasil. Na altura, já no doce exílio onde continuava a receber o salário pago por quem paga impostos, a turista de luxo justificou-se com o incrível argumento de que não lhe passava pela cabeça ter que partilhar cela com criminosas de delito comum. Glosando Orwell, confirma-se que uns são mais iguais que os demais.


Esta santa terrinha dos doces e suaves costumes tem este encanto. As lentes trocadas caucionam como naturais as coisas vistas de pernas para o ar. Gente sem vergonha que se ufana dos feitos e ainda se condói pela injustiça de que é vítima ao dar com os ossos em tribunal. É um ar de terceiro-mundismo latino-americano que nos dá, com frequência. Só nos faltam as praias paradisíacas, o clima exótico, ou o exotismo dos indígenas bolivarismos. No fim de contas, esta terra é uma gargalhada pegada. Um programa de humor incessante. Quem disse que viver aqui é desagradável?


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