Os minutos escassos. O pretexto para a sagração da existência. A cada um, o pessoal muro das lamentações onde se expia o tempo desperdiçado em inúteis padecimentos, os padecimentos que levam a lugar algum. O muro onde se despedaça a intensidade do ser, reduzido a uma expressão risível, lamentável, de si. Às voltas com dores ficcionadas, ou às voltas com as enfermidades que se exageram nos seus efeitos, o tempo escapa-se entre os dedos. Volátil, como a poderosa necedade que deixamos que seja apoquentação pessoal. A expressão de uma comatosa existência. Como se passássemos ao de leve, apenas ao de leve, pela existência que nos é dádiva.
E, no fundo, é tudo tão fácil. A celebração da existência – que por o ser, existência, merece que se erga um cálice diário com o néctar que festeja a passagem pela vida. Nesse cálice há-de repousar o mágico néctar, um dia atrás do outro, num prodigioso louvor ao que somos. Sem agradecimentos embrulhados em enigmática metafísica, que a cada um cabe arrepiar o seu caminho. Chegar ao fim do dia, ou acordar pela fresca alvorada, é o festim maior. Pela cabeça passam imagens do hedonismo na sua máxima expressão. Povoadas por intermináveis festanças onde a música é credora de sublime exaltação.
Um exercício terapêutico: olhar em redor e contemplar todos os fragmentos da beleza, mesmo nas coisas mais banais, mesmo nas coisas mais improvavelmente belas. Uma árvore nua no pináculo do Outono. As pessoas que se cruzam na rua na indiferença recíproca. Os carros que passam e emprestam o ruído e a cor sem os quais as cidades não seriam cidades. Os rostos, uns irradiando alegria contagiante, outros cerrados sobre as próprias sobrancelhas, sorumbáticos ou apenas desconfiados. O par de namorados, decerto de há poucos dias, que faz juras de amor enquanto se entrega à volúpia do afecto. A água que corre, langorosa, pelo ribeiro que desce a serrania até se confiar na embocadura do grande rio, já as águas no seu remanso leito. Ou a assombrosa coreografia do mar em dias de avassaladora tempestade, nem que seja nos dias calmos onde o vento se aquieta e semeia o mar chão onde apenas o sol resplandece. Uma criança que cresce todos os dias, como se sentisse o pulsar das veias, como se houvesse mister de observar os membros a crescer centímetro a centímetro, os traços faciais a mudarem com a sucessão dos dias. A magia maior: a mulher grávida, arrastando a custo a barriga proeminente que dentro de dias há-de gerar nova vida.
O metódico niilismo é cansativo ao cabo de uma larga temporada. Nem os alicerces do pessimismo antropológico aguentam as sucessivas, intermináveis folhas do calendário que vão sendo arrancadas. As coisas têm o seu lado belo, as pessoas encerram em si, bem debaixo da espuma fétida, uma pureza decantada. Apetece subir ao palco onde está em cena a magistral partitura que é o festim da vida. O palco onde todas as coisas e pessoas são actores de um festim em uníssono. Onde as diferenças apenas unem. As pessoais desavenças banidas do dicionário, elas sim o veneno maior que liquida a adocicada existência. O palco onde palavras vãs, palavras desesperançadas – "utopia", "ilusório", "ingenuidade" – deixariam de possuir o sentido corrente. Ao som da música, com vozes de poetas a lerem poemas de outros poetas. Até o tempo seria todo "bom tempo". Até a chuva impiedosa, outrora melancólica, sinal do "mau tempo" que nunca se percebeu porque carregou com o adjectivo que desqualifica. E as feras seriam criaturas amansadas. Da maldade, apenas um vestígio arqueológico.
O festim em exaltação do milagre da existência. Pois ela é tão frágil, sempre um fio ténue a separá-la da sua negação. Eis a razão maior para o festim contínuo. Não sei onde encontrar aquele palco prodigioso onde tudo se consome na sua interminável beleza. Desconfio que esse palco habita encerrado algures numa catacumba interior, algures aprisionado sem se conseguir deliciar com a luz do sol ou a apatia de um céu carregado de plúmbeas nuvens.
Mas sei: que quero descobrir o mapa que segreda a rota até a esse remoto lugar.
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