5.11.08

De regresso ao pessimismo antropológico: o que está mal, o capitalismo ou os seus agentes?



A interminável discussão: a crise vem provar que o capitalismo faliu (hipótese mais radical) ou que o indefinível "neo-liberalismo" entrou em ocaso (hipótese mais moderada)?


Os que nunca se entusiasmaram com mercados sem regulação, de mão dada com os habituais críticos da economia de mercado, sentem que a actual crise lhes está a dar razão. Como se a razão fosse assim tão fácil de objectivar, como se a razão fosse perene. Vou deixar de lado os que ainda choram a orfandade do derrubado muro de Berlim. Concentro-me nos que clamam pela superação dos mercados em funcionamento anárquico, sem a mão reguladora das autoridades. Destes quadrantes – mesmo daqueles que, com responsabilidades de governo, conviviam com os agora nefandos capitalistas de que querem distanciamento por estes dias – chega o diagnóstico lapidar: houve ganância a mais, gente inebriada com o perfume do lucro fácil. Rematam o raciocínio com a sentença definitiva e, a seu ver, incontroversa: é preciso renovar o capitalismo, encerrar o "neo-liberalismo" nas catacumbas do passado.


Ora, as ideologias exigem contacto com a realidade humana. As ideias são um produto da massa cinzenta das pessoas. Todavia, parece excessivo o raciocínio em que laboram muitos dos excitados advogados de defesa do funeral do "neo-liberalismo". É a falácia da árvore e da floresta. Da mesma forma que é errado confundir a árvore apodrecida com a floresta – só a primeira é que apodreceu, a floresta mantém-se viçosa –, é um exagero decretar a falência do tal "neo-liberalismo", ou a necessidade de renovar os alicerces do capitalismo, porque uns quantos actores do sistema se embriagaram na soberba. Os sacerdotes do intervencionismo do Estado, sobretudo os que ainda navegarem nas águas da honestidade intelectual, hão-de reconhecer que declinar para generalizações fáceis não é o melhor método para tirar conclusões credíveis.


(De permeio, porque não discutir outra falácia: as culpas, na maneira de ver desta gente exultante, repousam apenas em determinados actores. O resto, uma imensa multidão de inocentes, sacrificados diante do altar do lucro fácil que os primeiros congeminaram.


Algo não bate certo neste retrato idílico que apresenta os culpados convenientes. Na origem da crise financeira que começou nos Estados Unidos está a bolha do mercado imobiliário. Eis as interrogações: os riscos insensatos na autorização de crédito só são imputados a quem emprestava dinheiro? Por mais que sejamos instruídos pelo lirismo da inércia das autoridades, não seria a política de crédito fácil instrumental para os políticos que se querem perpetuar no poder? E mais: os que pediam crédito são tão ingénuos, tão ignorantes, ao ponto de passarem ao lado do elevado risco? Está convencionado que os culpados – e ainda sem direito a julgamento, o que é mais fantástico vindo de quem se julga penhor dos princípios do Estado de direito – são os mais poderosos, os mais endinheirados, aqueles que quiseram fazer fortuna à custa das legítimas aspirações da populaça que queria viver melhor. A populaça limitou-se a cair no engodo.


Há histórias da carochinha mais convincentes.)


De regresso ao embuste das generalizações (mais ainda as que são oportunistas): dou por adquirido que houve mesmo ganância de uns quantos e que essa avidez detonou a crise. Serão todos acusados deste pecado? Não serão comportamentos isolados, todavia com um impacto devastador no sistema financeiro, de um punhado de gente que quis beber a água toda de uma só vez? Todos os actores do sistema financeiro comungam do comportamento censurável que preenche o imaginário conspirativo de largas fatias da ficção literária que se julga argutamente científica?


Esta é a minha sugestão, a interpretação que faço: as ideias continuam a ser boas. Quem falhou foram alguns dos intérpretes. Aqueles que, a dar-se como provado em tribunal (e não antes do tempo, em sumários julgamentos), forem culpados da usura que semeou a actual crise. São as podres árvores. Não põem em causa as ideias, que continuam tão frondosas quanto a floresta diante dos nossos olhos. Admito que esta interpretação possa ser acusada de ingenuidade. E que esteja a resvalar para um oportunista pessimismo antropológico, que visa apenas salvar as ideias crucificando quem as perverteu.


Em minha defesa: a de, há muito, militância pelo pessimismo antropológico.


Sem comentários: