Os gangsters, encurralados pela polícia, ensaiam desesperada tentativa de fuga. As suas pistolas disparam contra os polícias, que ripostam. No caótico tiroteio, as balas aleatórias tropeçam nas esquinas do edifício onde estão sitiados. Gangsters e polícias à mercê da lotaria dos projécteis. Quando as balas se esgotaram e o cheio a pólvora testemunhava os corpos que jaziam no chão, uns feridos e outros já sem vida, a contabilidade das baixas. Havia mais baixas entre os criminosos. Mais tarde, dois polícias vão ao hospital visitar um dos gangsters a quem foi retirada uma bala do braço. Pelo calibre, a conclusão simpática da boca de um dos polícias: "fogo amigável".
Só a formidável lógica castrense é que podia inventar a expressão "fogo amigável". Supõe-se que as balas disparadas pelo revólver de um dos companheiros do gangster ferido eram balas doces, balas que ao perfurarem a carne do criminoso não lhe causavam dor. Assim como assim, tratava-se de uma bala amiga. E, acredita-se, os amigos não existem para causar dor.
Já sei: fogo amigável é uma metáfora. Quando o polícia recolheu a bala extraída do braço do patife notou-se a expressão de alívio. Ele não tinha sido atingido por bala disparada por um polícia – como se caíssem os parentes à lama quando um polícia atinge alguém a tiro. Mas o polícia exprimia o sossego interior ao saber que o gangster não fora alvejado por um dos seus. Fora de hipótese ser processado pelo gangster. Aquela bala, que já era prova policial, cuidadosamente enfrascada para o efeito, ganhava uma plácida condição só ao alcance do "fogo amigável". Não era bala; era supositório com os mágicos predicados anestésicos. Uma bala para curar as dores.
Há muitos fogos amigáveis. Há os disparados por balas lancinantes. E há o fogo amigável servido na bandeja das palavras cortantes, das palavras implacáveis, as palavras que são devastadoras. Num assomo de frontalidade, elas destroem a auto-estima de quem as escuta. Diz-se: balsâmica honestidade, que de muito se querer alguém essa pessoa merece escutar as palavras desassombradas, nem que elas sejam um forte abalo telúrico aos alicerces enraizados. Não deixam essas palavras de ser sucedâneo de fogo amigável. As palavras impiedosas estalam no corpo da pessoa a quem se destinam, como se fossem uma granada que a estilhaça em pedaços.
A reacção espontânea do atingido pelo fogo amigável das palavras destemidas é um grito de dor, o protesto contra aquelas palavras julgadas desabridas. Jamais se esperaria que as balas viessem disparadas com o rótulo amigável. Diz-se: que da amizade irrompem os alicerces da confiança e que se exige recíproca compreensão. Respeito é a rima necessária. Quem tudo isto argumenta não está à procura de amigos; apenas de comiseração. Pela piedosa convivência exige-se a caução de todos os actos. As janelas encerram-se aos reparos, até à construtiva crítica, que chegam entoados pela boca de quem se julga pessoa querida. Todas as balas têm o mesmo amargo sabor, na esguia dor que provocam quando se alojam na carne. Venham de onde vierem – sejam fogo amigável, ou troem por mão inimiga.
Fico convencido: faz sentido o fogo amigável. Não na patética troca de balas entre gangsters e polícias, que às balas transviadas não colhe a distinção entre fogo amigável e fogo inimigo. Essas balas, amigas ou não, ferem e matam, ensanguentam tanto umas como outras. As balas que vêm embrulhadas nas palavras que doem ao serem escutadas são, às vezes, a terapêutica necessária. Que só os infatigáveis militantes da frontalidade têm capacidade, e muitas vezes a coragem, de proferir.
Essas balas podem chegar com o fétido odor da pólvora, podem causar feridas que ficam abertas por muito tempo. É na máscara do tempo que as feridas cicatrizam, que o pessoal sofrimento se suaviza. Só então, com o distanciamento do tempo, sobra o discernimento. É então que se percebe que aquelas balas tinham o doce travo amigável. Por vezes, é tarde para reparar os danos do fogo que se julgou pessoal aleivosia quando eram, afinal, amigáveis balas.
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