Um bispo a perorar: se caminhamos para uma crise demográfica, por que se aceita o aborto e todo um relativismo ético que faz soçobrar a família como "célula nuclear"?
Não digo que os senhores padres e bispos e por aí acima na hierarquia eclesiástica se calem perante os problemas da sociedade contemporânea. A liberdade de expressão merece todas as homenagens, até o tempo de antena aos dislates que os representantes da igreja repetem sem cessar sempre que oferecem oratória sobre assuntos que a sua forma de vida desaconselha opinião, por desconhecimento de causa. Mete-me confusão que se armem em cavaleiros que vigiam os bons costumes, como se neles houvesse uma aura especial que permite sentenciar se os caminhos pisados pelo rebanho são certeiros ou um equívoco. É por isso que lhes causa transtorno o odioso "relativismo ético" – ou qualquer espécie de relativismo: é nele que esbarram as certezas milimétricas que são património genético da doutrina católica.
Há associações de ideias convenientes para os dogmas da igreja católica, mas que soam a pérfida inteligência a quem está de fora. Quando o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, que é também arcebispo de Braga, protesta a sua perplexidade pela abertura da lei ao aborto logo agora que se anunciam nuvens negras no plano demográfico, sinto-me diante de uma manifestação de terrorismo mental. A igreja tem o direito de se opor ao aborto. O que já passa das marcas é aproveitar a diminuição de nascimentos, que ameaça a consistência demográfica, para a enésima exibição contra o aborto. Apetece perguntar pela honestidade intelectual do arcebispo: indague, junto das estatísticas, se é pelo aumento dos abortos (dos que agora têm cobertura da lei e dos que sempre se fizeram às escondidas da lei) que se explica o recuo na taxa de natalidade. Nisto, nada o diferencia de um político demagógico: também na igreja há quem tenha tirado doutoramento em soundbytes cheios de inanidade.
A visão da sexualidade com a chancela da igreja é por demais conhecida. Se fôssemos todos obrigados a ser católicos, e devotos, daqueles que seguem acriticamente os mandamentos da hierarquia eclesiástica, pecaríamos menos ao sermos menos dependentes de sexo. É a visão de um mundo asséptico, que tanto agrada aos sacerdotes que teimam em mandar palpites sobre a vida íntima de cada crente (e dos não crentes também). Se o mundo fosse perfeito – um lugar exposto ao totalitarismo da igreja – seria pecado mortal desperdiçar um espermatozóide que fosse.
O catolicismo, metido no seu arcaísmo, continua a conviver mal com o livre arbítrio de cada indivíduo. A igreja gostaria de todos arrepanhar na coutada de ovelhas não tresmalhadas, e muito obedientes, que seguem os mandamentos porque eles são ditados pelos intocáveis arquitectos da doutrina católica. Aquilo que o catolicismo teima em não entender é a liberdade individual. Para um ateu, este é indubitavelmente o bem maior, maior do que a fé numa qualquer entidade divina. Por isso é que a igreja católica fica no limiar da apoplexia quando dá de caras com visões de vida que se distanciam das que são por ela preconizadas (a que chama, por conveniência, "relativismo moral"). Ou quando esbarra no, a seu ver, censurável hedonismo.
Tudo isto se articula num documentário de cariz idêntico que me chegou ao conhecimento por mão amiga: "Inverno Demográfico". Num caso como noutro, o mesmo dantesco diagnóstico é pretexto para soluções que liquidam o livre arbítrio de cada um. Todos devemos constituir família. Todos devemos sagrá-la. Cada um se deve mentalizar do imperativo que é o contributo pessoal para derrotar o inverno demográfico que uns e outros anunciam, procriando e de forma abundante. Ao que consta, é um dever inerente à participação de cada um na sociedade global. Às malvas a sensibilidade de cada um (pois há quem não queira constituir família). E às malvas a ausente predisposição para deixar numerosa prole (pois há quem esteja no seu direito de não deixar descendência).
Como sempre me causaram espécie os "imperativos categóricos" destilados por gente muito senhora das suas certezas serem as certezas de toda a gente, digo: que os padres e freiras (em idade pré-andropausa e pré-menopausa) se alistem no rol dos que contribuem para revigorar uma ambicionada primavera demográfica. Que sejam eles a dar o exemplo. Com uma vantagem adicional: passariam a falar com conhecimento de causa sempre que perorassem sobre a sexualidade dos outros. Se o mal é tanto, deve justificar um desvio aos arcaicos dogmas católicos.
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