14.11.08

A notícia que gostaria de ler


Há dias, alguém se lembrou de passar os sonhos particulares para uma versão forjada do New York Times. Fizeram uma tiragem de mais de um milhão de exemplares e distribuíram o jornal gratuitamente nas ruas. As pessoas, desprevenidas porque à primeira vista parecia a versão verdadeira do jornal, ficavam boquiabertas com as notícias, todas belas notícias (para certos sectores, bem entendido). Eu também gostava de ler notícias idílicas num qualquer jornal. Mesmo que se tratasse da extensão dos sonhos, ou de pessoais desejos, para as páginas de um imaginado jornal. Como esta notícia, com o seguinte bombástico título: "Sócrates não se recandidata a primeiro-ministro". O corpo da notícia seria o que segue.


"Ninguém o esperava. A conferência de imprensa foi marcada de surpresa, à última da hora, sem indicação do assunto que trazia apenas o rótulo de urgência. Nem sequer houve tempo para as habituais especulações entre comentadores e jornalistas. No meio da azáfama, só houve tempo para meter ao caminho em direcção do Largo do Rato.


Sentia-se o ar tenso na sede dos socialistas. Os funcionários, misturados com figuras gradas do PS, mostravam um semblante carregado. Nos instantes em que foi possível abordar alguns funcionários e figuras gradas do PS, a tarefa de extorquir informação sobre o tema da conferência de imprensa esbarrava no mutismo. Ao longe, uma secretária já idosa deixou escapar uma lágrima furtiva. O mistério adensava-se na exacta medida daquela lágrima, como se ela fosse uma inconfidência sem segredo algum revelar.


Com cinco minutos de atraso, o primeiro-ministro – ou seria o secretário-geral do PS? – entrou na sala. Pose grave e corpo tenso, situou-se no palanque e esperou que os jornalistas se acomodassem. Notava-se algum cansaço, tristeza até. Ao lado, uma jornalista que costuma acompanhar as visitas oficiais notou algo que não era usual: as mãos trémulas contrastavam com a habitual dose de confiança que lhe permitia abordar qualquer acontecimento, mesmo os mais solenes, com uma serenidade impressionante. Começou a discursar. Disse que ia fazer uma curta declaração e que depois se punha à disposição das perguntas dos jornalistas.


Não demorou a revelar o segredo. À segunda frase, informou que tinha tomado uma difícil, mas contudo irrecusável, decisão: não se ia recandidatar a primeiro-ministro. Andava a ponderar no assunto há alguns meses. Tinha acumulado muito cansaço. Soltou uma inusitada confissão pessoal: olhava-se ao espelho, todas as manhãs, e os abundantes cabelos brancos eram o sinal da extenuação de governar um país. Um ingrato país. Protestou a sua indignação por haver tanta gente incapaz de lhe devolver o mérito que ele julgava ser a recompensa merecida pelos prestimosos serviços à pátria. Sentia-se fatigado da useira ingratidão indígena.


Atacou a comunicação social, acusando-a de fazer o jogo das muitas e desgarradas oposições. Os passos desacertados tinham prova nas sondagens que colocavam o PS na senda da maioria absoluta ou muito perto de lá chegar. Se as sondagens o continuavam a premiar, como entender que na comunicação social destilasse tanta crítica, algum ódio até, à sua governação? Teve o desassombro de admitir que tolera mal a crítica. Defeito pessoal, disse, num tardio assomo de político com rosto humano. E mais disse: que tem o direito de se sentir magoado pelas críticas, pois elas revelam má-fé, incompreensão das políticas postas em marcha, alguma distorção que enviesa a análise. Atirou-se à conjuntura internacional, que com a passagem do tempo se foi afundando numa crise ímpar que dificultava a vida ao leme da nação. Nas entrelinhas pôde-se entender a amargura de um primeiro-ministro que sentia a conjuntura internacional virada contra si, como se fosse uma terrível conspiração de forças invisíveis no palco internacional.


Rematou a comunicação: com modéstia – ou seria imodéstia? – percebeu que o povo não o merece. Largos sectores da sociedade confundiam crítica pessoal com incapacidade para ajuizar com frieza as medidas do governo que liderava. Era um homem doído que ali se expunha diante de uma plateia de jornalistas inerte, lívida, sem reacção. Não guardou segredo do que ia fazer no futuro. Ainda era novo para se reformar, tantas as energias e a percepção das inigualáveis capacidades intelectuais que não mereciam ser desperdiçadas numa retirada de cena.


Das andanças dos últimos tempos, conseguira discernir a sua vocação: passaria a ser embaixador da empresa J. P. Sá Couto. Andaria pelas sete partidas do mundo a divulgar as incontáveis virtudes do computador portátil Magalhães, a aspergir a literacia informática entre as criancinhas e os menos jovens. O ensejo para conhecer o mundo inteiro sem carregar atrás de si uma comitiva de voyeurs jornalistas. A oportunidade para deixar a sua impressão digital no futuro ainda por fazer, ele que tantas vezes havia proclamado que andava a fazer história.


Dobrou o papel onde tinha escrevinhado o discurso e, fazendo tábua rasa da promessa do início da conferência de imprensa, abandonou a sala deixando os boquiabertos jornalistas sem hipótese de lhe dirigirem perguntas."


Exultaria se me fosse dado o privilégio de ler esta notícia. Mas não me iludia. Na retaguarda do amargurado primeiro-ministro que ali se despedia, o delfim (António Costa) era o rosto de mais do mesmo.


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