Agora já podemos acordar e olhar sem temor para um radioso amanhã que se anuncia. Tranquilizam-nos as estatísticas: há por aí, nos bancos das escolas, uma prodigiosa geração que promete subtrair esta terra ao adormecimento e à indigência. Se em tempos alguém sentenciou que o nosso atraso (entre outras causas) se devia à inépcia para os números, o ministério da educação tratou de encerrar em definitivo túmulo os habituais tormentos das gentes com os números. As estatísticas não deixam mentir. Quem ousar discordar, ou é um dos ignaros que lida mal com a arte dos números, na sua incapacidade para os interpretar; ou está possuído por tenebrosa má-fé.
Esta é a convocatória oficial: devemos acreditar que a entusiasmante estatística traz um efeito de contágio para as criancinhas que hão-de aprender matemática. A engrenagem é imparável, com a prestimosa ajuda das profecias que se anunciam nos números montados em cirúrgicas estatísticas. Tudo se resume a uma crença. As gentes têm que acreditar. Que os jovens, que amanhã serão carne para canhão das lustrosas estatísticas da colectiva proficiência escolar, são feitos da mesma têmpera dos que alimentaram esta sobrenatural revelação feita através do manto das estatísticas. E devem acreditar que os pedagogos que tomaram conta do ministério da educação sabem o que fazem. Nem que seja uma tremenda ilusão colectiva, uma espécie de aparição da nossa senhora aos pastorinhos, só que em vez dos pastorinhos estamos todos convocados a acreditar que a indigência já só pertence às memórias.
Ai de alguém que denuncie a cultura de facilidades escolares como explicação para o súbito pulo no desempenho dos alunos. Terão que arrostar com as acusações de desonestidade intelectual, ou de atraso no conhecimento das vanguardas da pedagogia e da didáctica, porventura até de levarem com a pior das acusações que nestes dias se pode abater sobre um cidadão – ser oposicionista ao governo. Os críticos deviam perceber que os prescientes pedagogos que redesenham a política de educação estão três passos à frente de todos nós.
Os críticos do facilitismo nas escolas não conseguem reprimir os seus particulares traumas escolares. Andaram pelos bancos das escolas quando se teimava que a exigência pertencia a uma cultura de excelência, uma ferramenta que preparava as criancinhas para a selva que haveriam de encontrar na idade adulta. Têm inveja das facilidades que são o pasto para os alunos de hoje. Aprender não pode ser uma maçada. A cultura de exigência na escola esbarra com a lógica anti-maçada da aprendizagem. Remova-se essa cultura. A fasquia tem que descer para não traumatizar as criancinhas de hoje. Não se destruam as ilusões das gerações que crescem a ver o Noddy, na alucinação de que o mundo é tão ingénuo como as historietas do Noddy; as facilidades na escola, imprescindíveis para que consigam ser Noddy quando chegarem à adulta idade. O truque, mesmo debaixo do nariz de toda a gente: exames fáceis. E o último grito da moda: banir a palavra "reprovação" do léxico escolar.
A lógica deve ir por aí fora, à medida que as criancinhas se forem fazendo adolescentes e ficarem às portas da universidade. Quem sabe, se daqui a uns anos, até nas universidades – sabiamente aconselhadas por comissários do governo – reprovar seja proibido e a avaliação rejeitada se não satisfizer a báscula do facilitismo? Alguém se surpreende pela aniquilação da indigência colectiva por magia da estalinista manipulação das estatísticas? Alguém ainda fica boquiaberto com o experimentalismo pedagógico que extingue, à força de decreto, as reprovações e impõe, como bitola, as facilidades? Temos, no timoneiro da pátria, o espelho que oferece as respostas àquelas interrogações.
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