27.11.08

Ontem, o tempo e o modo


Não eram sonhos – que esses cavalgam um tempo ausente. As asas batiam sempre no sentido do tempo de outrora. No demorado voo pelo ontem que se eternizava pelos dias presentes. O ontem entaramelado com os dias vindouros. Era como só interessassem as recordações. A revisitação dos lugares, das pessoas, dos momentos vindos de um ontem, remoto. Os passos atravessavam esta dimensão invisível do tempo. Parecia que os ponteiros do universal relógio tinham aderido à inércia. Hoje, era apenas um teatro com uma larga tela onde desfilavam, ininterruptas, as memórias avivadas pela demissão do tempo corrente.


Talvez sem dar conta, a demissão do tempo desmentia a inércia do relógio. O tempo era voraz, o carrasco da infernal sensação de já ser mais o tempo vivido do que o tempo por viver. Demissão, contudo. Era como se já não contassem, ou tivessem escasso significado, os dias e meses e anos estendidos diante do tapete da vida. Um desperdício, da vida. A adoração compulsiva do ontem, como uma qualquer droga que traz viciação. Entretanto, o torpor instalado. Diria: a interminável contemplação do ontem como hibernação de si. O tempo e o modo eram cultores do ontem, de todos os ontem que se sucediam – dispersos, fragmentos – diante dos olhos ora semi-cerrados ora em pleno sonho acordado.


Já não havia forças para o, agora considerado, inexpugnável terreno. O outrora admirável desconhecido era um hoje um temerário abismo de que não arriscava sequer chegar próximo. Uma resignação malsã. A acomodação aos dias idos, penhora da existência que se resumia a todos os ontem emoldurados na gaveta das memórias. O regresso aos lugares e às pessoas e aos acontecimentos, uma e outra vez – ou a redescoberta de fragmentos de um qualquer ontem ainda não resgatado aos sombrios arquivos da memória. Era a maneira mais expedita de envelhecer. Ou a maneira de deixar a vida mirrar-se diante da sua insignificância actual.


Neste altar só a nostalgia tinha lugar. Era como se o corpo inerte ganhasse raízes no lugar de onde se recusava a sair, por temor dos dias vindouros. Só havia endeusamento de todos os ontem apetecíveis e dos outros ontem que saciavam o apetite pela melancolia. E mesmo que teimasse em admitir o culto do tempo irrepetível, ainda que argumentasse em sua defesa dizendo que traz os olhos abertos ao tempo presente, o desgaste dos pés que teimavam em percorrer os trilhos de outrora era sintomático. Em todos os demorados momentos de contemplação de um ontem metia a existência entre parêntesis.


A adoração do ontem, seria um refúgio? A confortável cápsula que tornava possível enganar o tempo universal que teimava em correr à cadência habitual. Ou os livros, os filmes, a música, os quadros dantes visitados, por vezes à exaustão, e que se o tempo corresse na sua feição não deixava espaço à revisitação. Talvez doesse saber que não regressaria a certos lugares, nem teria a repetição de momentos com algumas pessoas. Nem, decerto, as gratificantes sensações teriam o mesmo sabor se forçadas a repetir-se. Ou que, não fosse forçar a espontaneidade das escolhas, o regresso a livros, filmes, músicas, pinturas só servia como nutriente da demanda por outro tipo de recordações associadas. Era aí que o obstáculo do tempo irrepetível se esmagava, com fragor, no seu peito. Mesmo que rompesse o espelho da espontaneidade, magoava a decepção maior: na revisitação de todos esses ontem, sobravam as sensações diferentes das que o ontem tingira com os seus dedos. Os lugares e as pessoas mudam, expostos ao indomável tempo. É aí que grita tão alto, num rumorejo insuportável, a definitiva sentença: o passado já está feito e não volta a acontecer. Por muito que as memórias se exercitem no simulacro do ontem que não pode voltar.


Essa era a sua consumição mais dolorosa, a impenitente mortificação interior que se esforçava por turvar. Ao dilema, uma de duas respostas. Ou prescindia da nostalgia imberbe, fazendo-se regressar à existência que tinha, deliciando-se, embriagando-se até, nos dias que nasciam todos os dias e ofereciam um banquete singular – o da degustação diária da vida. Ou ensimesmar-se nos muitos ontem que gabava possuir em armazém, fautor de uma vida tão preenchida.


Era comboio que já passara, sem retorno. O inútil devaneio dos adoradores do ontem. A ausência de si, navegando nas águas etéreas do ontem que, contudo, se escapa entre os dedos como acontece a quem insiste em agarrar o vento.


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